Turquia pode perder muito no impasse Rússia-Ucrânia
Um conflito poderia derrubar o delicado ato de equilíbrio entre a OTAN e a Rússia.
O acúmulo de forças russas na fronteira ucraniana despertou a preocupação com uma possível escalada do conflito no leste da Ucrânia e provocou uma enxurrada de diplomacia que procurava liderar uma nova ofensiva russa. A possível escalada entre Moscou e Kiev representa um sério desafio para a OTAN, que há muito tenta tranquilizar a Ucrânia sem provocar a Rússia.
Este dilema é particularmente agudo para a Turquia, uma potência regional que tem tensas relações com muitos aliados da OTAN. Isso é em parte resultado do cultivo de Moscou pelo presidente turco Recep Tayyip Erdogan, mas também porque Erdogan tem buscado um relacionamento político e militar mais profundo com a Ucrânia, que alguns aliados consideram altamente provocador.
Por enquanto, Ankara parece apostar que a crise nas fronteiras da Ucrânia pode ser resolvida diplomaticamente. No entanto, os oficiais russos percebem o relacionamento militar e técnico de Ancara com Kiev e seu envolvimento com a comunidade tártara da Crimeia como gestos provocadores. E, com a economia turca em crise, a popularidade doméstica de Erdogan caindo e os impasses entre as forças turcas e russas nos cenários do norte da África ao sul do Cáucaso, a Turquia está entre os atuais membros da OTAN com mais a perder caso o confronto nas fronteiras da Ucrânia aumente.
O dilema da Turquia é uma consequência de sua busca de uma autonomia e influência estratégicas maiores ao longo de uma região mais ampla que embarca os Bálcãs, o Oriente Médio árabe e o Cáucaso. Esta busca a deixou isolada de muitos aliados da OTAN e trancada em um complexo pas de deux com a Rússia.
Em sua maioria associada com o Partido da Justiça e Desenvolvimento de Erdogan, a aspiração da Turquia de remoldar a ordem regional emergiu logo após o colapso da União Soviética, conforme Ancara se posicionava como sendo uma parceira e patrona de seus vizinhos pós-comunistas enquanto buscava laços mutualmente benéficos com Moscou. Mais recentemente, as prioridades dos EUA que estão mudando, incluindo um apoio reduzido ao intervencionismo no Oriente Médio e uma atenção crescente na Ásia, encorajaram mais ainda esta mudança.
No entanto, o número de equilibrismo se tornou cada vez mais difícil conforme as tenções entre a Rússia e a OTAN têm se aprofundado. Ancara reagiu fortemente à anexação da Crimeia em 2014 pela Rússia e à invasão da região de Donbass no leste da Ucrânia. Simpatia pela comunidade tártara da Crimeia muçulmana e falante de uma língua túrquica alvo das autoridades de ocupação russas foi ampla na Turquia, lar de uma grande diáspora tártara da Crimeia. Moscou também tomou controle de muitos dos navios da marinha ucraniana e da infraestrutura portuária quando se apoderou da Crimeia, mudando dramaticamente o equilíbrio de poder no Mar Negro, invertendo a vantagem anterior da marinha turca.
Em resposta, a Turquia estendeu o apoio político e diplomático aos grupos tártaros da Crimeia,
Enfatizando que não reconheceria a anexação russa. Ela também intensificou a cooperação militar-técnica com Kiev, notavelmente através da venda de drones armados avançados, os ucranianos se mobilizaram contra os separatistas apoiados pelos russos em Donbass.
A Ucrânia não foi o único, nem se o mais significativo, escape para as ambições de Ancara. A Turquia interveio na guerra civil síria, primariamente para prevenir que os curdos sírios consolidassem sua autoridade ao longo da fronteira. Em 2020, as forças turcas interviram na Líbia para fortalecer o governo interino reconhecido pelas Nações Unidas (com quem também assinou um acordo de fronteiras marítimas controverso em dezembro de 2019 para assegurar o acesso ao petróleo e ao gás no Mar Mediterrâneo). Também em 2020, as armas e soldados aliados se provaram instrumentais na ofensiva bem-sucedida do Azerbaijão para reganhar territórios ocupados pelos armênios em e em volta de Nagorno-Karabakh. Em cada um desses cenários, as forças turcas e russas se enfrentaram, às vezes se engajando em embates diretos.
Apesar da rivalidade regional crescente, a Turquia também buscou uma reaproximação estratégica com a Rússia em anos recentes. Os principais carros-chefes dessa reaproximação são, primeiro, a frustração com o apoio dos EUA às Forças Democráticas Sírias, cujo maior componente sãos os combatentes curdos de um ramo do Partido dos Trabalhadores do Curdistão, e segundo, consequências da tentativa de golpe abortiva em 2016 dos militares turcos, que Erdogan põe a culpa nos seguidores do clérigo Fethullah Gülen, que mora nos EUA.
O aspecto mais visível dessa reaproximação é a decisão de Ancara de comprar o sistema de defesa aérea russo S-400 (em parte, aparentemente, para se proteger contra a participação da força aérea turca em outra tentativa de golpe). Essa compra levou à expulsão da Turquia do programa de jatos caça F-35, liderado pelos EUA. No entanto ela também deu a Ancara capital diplomático com o Kremlin que ela explorou para lidar com os impasses na Síria, Líbia e no sul do Cáucaso. Em cada um desses cenários, Erdogan e o presidente russo, Vladimir Putin, engajaram em uma diplomacia de alto-nível frequente, elaborando cessar-fogos informais projetados para acomodarem os interesses principais de cada lado. Ancara aparentemente acredita que conseguirá aplicar um modelo similar ao conflito na Ucrânia.
Mas, embora Moscou tenha estado disposta a tolerar a atitude mais assertiva da Turquia na Síria, Líbia e no sul da Cáucaso (em parte fazer assim ajuda a reforçar a ideia de a Turquia ser um ator regional independente em vez de um baluarte ocidental), a Ucrânia pode se provar como sendo um passo grande demais.
As autoridades russas já indicaram que veem o apoio de Ancara aos tártaros da Crimeia como uma ameaça à integridade territorial russa – na medida em que Moscou considera a Crimeia como território russo – e o uso de drones turcos em Donbass foi citado como um catalisador para o atual acúmulo de forças russas ao longo da fronteira da Ucrânia. Embora esses drones deem à Ucrânia capacidades adicionais, seu efeito no equilíbrio geral é limitado, especialmente no evento de um conflito de alta-intensidade envolvendo o poder aéreo russo: Mesmo com drones turcos, a força militar da Ucrânia tem pouca esperança de se segurar contra uma ofensiva russa de larga escala.
Desde a inauguração do Presidente dos EUA, Joe Biden, em janeiro de 2021, Ancara tentou remendar suas incríveis querelas com Washington e outros aliados da OTAN – em parte por causa da preocupação de que um isolamento crescente a deixa cada vez mais vulnerável à pressão russa. No entanto, as posturas em Washington se endureceram nos anos recentes. As tensões por causa da compra do S-400 reforçaram frustrações que já vêm de muito tempo, particularmente na Colina do Capitólio, e as repressões do governo turco contra a imprensa, a sociedade civil e os partidos de oposição exacerbaram essa tensão. Apesar dos esforços para melhorar as relações (incluindo uma reunião entre Biden e Erdogan nos bastidores da cúpula da OTAN em junho de 2021), uma mudança importante é improvável até depois das eleições turcas (atualmente agendadas para 2023) que poderiam ver o fim da presidência de Erdogan.
Enquanto isso, Ancara arrisca um isolamento diplomático e um sobrecarregamento estratégico no evento de um conflito renovado. A Rússia poderia aumentar a pressão contra os interesses turcos (no bolsão de Idlib na Síria, por exemplo) para assegurar que Ancara fique nos bastidores na Ucrânia. Isso poderia também oferecer uma isca: Unida com a crise nos suprimentos de gás para a Europa através de Belarus e da Ucrânia, o cancelamento ou suspensão do gasoduto Nord Stream 2 por reguladores alemães seria uma dádiva para os gasodutos Blue Stream e TurkStream, reforçando (pelo menos a curto prazo) as ambições da Turquia para impulsionar o seu papel como um estado de trânsito.
No entanto, as consequências mais amplas de uma ofensiva russa contra a Ucrânia provavelmente serão negativas, tais como a maior consolidação da superioridade militar/naval russa no Mar Negro, o enfraquecimento da parceria da Turquia e da Ucrânia, um dano maior à economia turca, e o potencial para fluxos de refugiados e ataques contra interesses turcos na Síria e em outros lugares.
A escalada do conflito entre a Rússia e a Ucrânia seria uma tragédia para uma boa parte da Europa. Para a Turquia, poderia traduzir o fim do número de equilibrismo de longa data entre a Otan e a Rússia – junto a acabar com a ambição por influência regional que definiu a era de Erdogan no cargo.
Por Jeffrey Mankoff, um distinto pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos Nacionais da Universidade de Defesa Nacional dos EUA.
Fonte: Russian Military Buildup on Ukraine Border Threatens Turkey’s NATO Relations (foreignpolicy.com)