Gülen diz que governo reduziu direitos e liberdades na Turquia
Erudito islâmico Fethullah Gülen, que inspirou o popular movimento cívico e social chamado Hizmet, afirmou que se preocupa com as ações do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) que reduziram direitos e liberdades fundamentais na Turquia.
“Houve sério regresso em direitos e liberdades fundamentais nos últimos anos”, disse, ele, lamentando a linguagem ofensiva e subversiva utilizada por políticos que estigmatizam e marginalizam grande parte da sociedade turca.
“Durante os protestos do Gezi Parque, deixei clara minha objeção à descrição dos manifestantes como ‘çapulcu’ [bandoleiros]. O mesmo se aplica aos alevitas. A Turquia falhou em introduzir soluções democráticas para garantir os direitos fundamentais deles”, explicou, Gülen, em entrevista exclusiva ao Today’s Zaman.
Gülen reafirmou sua posição sobre estabelecer um partido político, “não somos e não seremos um partido político. Portanto, não somos rivais de nenhum partido”.
Ele também deixou claro que continuará a expressar suas opiniões quando necessário, ressaltando que esse é um de seus direitos naturais e democráticos. “Não entendo porque algumas pessoas não gostam quando exercemos nossos direitos democráticos. Dizer às pessoas do país ‘Eu tenho esta e aquela ideia’ não deveria ser crime. Em democracias avançadas, indivíduos e organizações de sociedade civil disseminam suas opiniões e criticismos livremente sobre os assuntos políticos do país e ninguém se preocupa com isso.”
Rejeitando descrições de uma “estrutura paralela” – termo inventado pelo beligerante Primeiro-Ministro Recep Tayyip Erdoğan, incriminado em um grande escândalo de corrupção –, Gülen declarou que todas as instituições afiliadas ao Hizmet estão abertas ao escrutínio público e operam em total concordância com a lei.
“Se servidores públicos são ‘fichados’ ou enfrentam acusações infundadas, isso é uma violação de seus direitos e liberdades fundamentais”, alertou.
Gülen rejeitou a alegação de que seu movimento busca uma posição no governo dizendo, “Nunca pedimos uma posição de gerente geral, governador, governador distrital ou ministro. Se alguém o fez no passado – e não me lembro disso ter acontecido –, então, essa pessoa não é mais ligada a nós. Já expressei como me sinto a esse respeito aos oficiais do Estado”, acrescentou.
Quanto à interferência do governo na mídia e judiciário, que foi, erroneamente, atribuída ao Hizmet, Gülen disse que as escutas telefônicas vazadas na Internet claramente indicaram que é o governo de Erdoğan que tem pressionado a mídia e o judiciário, não o Hizmet.
“Hoje, entendemos pelas gravações telefônicas postadas na Internet que os oficiais que governam o país abandonaram suas obrigações e trabalharam duro para garantir que aquelas pessoas fossem condenadas. Eles interferiram diretamente em licitações públicas para excluir empresários que mereciam os contratos. O que é trágico é que eles cometem um grande pecado ao pôr a culpa por seus erros em pessoas inocentes,” ressaltou.
Quanto aos réus do Ergenekon que foram liberados recentemente, Gülen disse que o governo poderia tê-los salvo há muito tempo, assim como o fizeram com o Chefe de Inteligência Hakan Fidan, que foi salvo com um projeto de lei apressado no Parlamento.
“Não estou em posição de interferir com as leis existentes ou fazer qualquer sugestão sobre esse contexto”, afirmou e acrescentou que “golpe é uma séria acusação e autoridades judiciais devem, conforme as regras que as governam, punir os responsáveis. Porém, talvez uma solução legal pudesse ter sido encontrada levando em consideração a idade e condições médicas daqueles mais idosos e acostumados a serem tratados com respeito a vida toda”.
Falando sobre rumores de que o Hizmet enfrentará repressão após as eleições locais, em 30 de março, o erudito islâmico afirmou que muitas coisas têm sido ditas por raiva. “Acredito que todos os insultos imagináveis foram feitos”, lamentou.
“Não há fim para a invenção de ofensas baseadas em crenças, ideologias, identidade em comum ou setores da população que trabalham em instituições públicas”, disse, Gülen, e acrescentou que “a prática de criar suspeitas sobre certas pessoas ou grupos com acusações infundadas destrói qualquer senso de imparcialidade, justiça e ordem.”
Veja abaixo extratos da entrevista:
Na superfície, parece que há uma disputa entre o governo e o Movimento Hizmet. Artigos foram escritos analisando essa disputa. Alguns dizem, “Podemos mudar um partido de que não gostamos por meio de eleições, mas como podemos mudar uma comunidade de que não gostamos?” O que o senhor pensa sobre isso?
Primeiro, preciso dizer que não há uma disputa entre o AKP e o Movimento Hizmet. Houve sério regresso em direitos e liberdades fundamentais nos últimos anos. A linguagem ofensiva e subversiva utilizada por políticos está transformando cada segmento social no “outro” e polarizando a sociedade. Durante os protestos do Gezi Parque, deixei clara minha objeção à descrição dos manifestantes como ‘çapulcu’ [bandoleiros]. O mesmo se aplica aos alevitas. A Turquia falhou em introduzir soluções democráticas para garantir os direitos fundamentais deles. Talvez, haja uma procrastinação deliberada quanto a isso. Nós apoiamos um projeto para construção de mesquitas-cemevis, mas recebemos reações adversas inesperadas.
Segundo, não somos e não seremos um partido político. Portanto, não somos rivais de nenhum partido. Estamos à mesma distância de todos. No entanto, tornamos públicas nossa esperanças e preocupações sobre o futuro de nosso país. Creio que esse é um de nossos direitos naturais e democráticos. Não entendo porque algumas pessoas não gostam quando exercemos nossos direitos democráticos. Dizer às pessoas do país “Eu tenho esta e aquela ideia” não deveria ser crime. Em democracias avançadas, indivíduos e organizações de sociedade civil disseminam suas opiniões e criticismos livremente sobre os assuntos políticos do país e ninguém se preocupa com isso.
Devo acrescentar que todas as instituições estabelecidas e dirigidas por nossos companheiros estão abertas ao escrutínio público e operam em total concordância com a lei. Em outras palavras, há uma estrutura totalmente transparente. Os acontecimentos recentes mostraram quem não é transparente. A participação no Movimento Hizmet é voluntária. É triste ver voluntários do Movimento Hizmet retratados como membros de uma organização clandestina apesar de essas pessoas exibirem total observância às leis. Há servidores públicos de vários grupos ideológicos em todas as instituições públicas. Um funcionário público pode ser de direita, de esquerda, alevita, sunita, não muçulmano, curdo, turco, o que quer que seja, mas ele deve realizar suas tarefas apropriadamente. O que importa é a observância das leis e regulamentos na execução de suas tarefas. Se servidores públicos são “fichados” ou enfrentam acusações infundadas, isso é uma violação de seus direitos e liberdades fundamentais. Se, do nada, você fala de uma “estrutura paralela” imaginária, suas ilusões criarão milhares dessas estruturas e você acabará oprimindo as pessoas.
Por que vocês se opõem, agora, a um partido político que apoiaram pelos últimos 12 anos? Seus interesses estavam alinhados e reconciliados antes?
Nunca estabelecemos cooperação baseada em interesses com ninguém. Nos abstivemos de fazê-lo porque esta é a lição que extraímos do Alcorão e da Sunnah. Sempre vi a busca por posições de poder e influentes como uma traição aos nossos valores. Nunca diria nada sobre as escolhas individuais das pessoas, mas sempre vi a busca por conquistas materiais e mundanas como danosa para minha vida após a morte. Esse também é o caso de meus amigos. Nunca pedimos uma posição de gerente geral, governador, governador distrital ou ministro. Se alguém o fez no passado – e não me lembro disso ter acontecido –, então, essa pessoa não é mais ligada a nós. Já expressei como me sinto a esse respeito aos oficiais do Estado.
Tentamos estender nosso apoio a questões como melhoria da democracia, direitos fundamentais e liberdade. Apoiaríamos qualquer partido que garantisse um fim para práticas antidemocráticas e que tornasse permanente a cultura de democracia pluralística. Partidarismo incondicional é uma coisa, apoiar práticas democráticas é outra.
Agora, voltamos ao mesmo ponto em que estávamos antes. Devemos procurar por aqueles que estejam se movendo para longe desta situação. Um partido político que, até pouco tempo, tomava medidas para expandir a esfera de liberdades e direitos fundamentais, agora, considera censurar a Internet e introduzir projetos de lei que fariam deste país um Estado de inteligência. É possível nos imaginar apoiando tentativas de prejudicar a coesão social por meio de discursos incisivos e insultantes e engavetar costumes democráticos? Se todo o problema fosse restrito ao Movimento Hizmet, você poderia tentar tolerar medidas repressivas. Porém, a situação atual deve ser analisada de uma perspectiva mais ampla. Infelizmente, a Turquia está sendo alienada do resto do mundo. Uma Turquia que se isola no cenário global e perde sua riqueza democrática prejudicará não somente a seu próprio povo, mas também a todos aqueles que a tomam como modelo.
Hizmet, erroneamente, culpado pelas más ações e condutas do governo
Há muito tempo, fontes do governo vem atribuindo todo tipo de adversidade doméstica e no exterior ao Movimento Hizmet e tudo que é bom, favorável e democrático a eles mesmos. Agora, com os réus do Ergenekon sendo liberados, estes estão recorrendo ao mesmo método num esforço de deixar a conta para o Movimento Hizmet. E, com o tempo, essa propaganda hostil funciona. O que o senhor diz sobre isso?
Eles tentaram iludir muitos segmentos sociais com calúnias. Por exemplo, eles disseram a alguns meios de comunicação, “Não temos problemas com vocês, mas o Movimento Hizmet está interferindo”. Hoje, entendemos pelas gravações telefônicas postadas na Internet que os oficiais que governam o país abandonaram suas obrigações e trabalharam duro para garantir que aquelas pessoas fossem condenadas. Eles interferiram diretamente em licitações públicas para excluir empresários que mereciam os contratos. O que é trágico é que eles cometem um grande pecado ao pôr a culpa por seus erros em pessoas inocentes. Fofoca, maledicência, difamação e calúnia são abundantes, e não dá para não se entristecer com isso.
A parte mais triste é sobre os militares. Aqueles que se gabaram, por trás das cortinas, sobre “fazer os militares se submeterem aos civis” ou “pôr um fim à tutela militar” disseram às autoridades militares, “Nós resolveríamos esse problema, mas o Movimento Hizmet nos impede”. Contudo, eles [o governo] passaram rapidamente um projeto de lei, especificamente, sobre o Chefe da MIT, Hakan Fidan. Se eles quisessem e fossem sinceros, poderiam ter decretado uma lei para salvar o ex-chefe do Estado Maior Gen. İlker Başbuğ e outros oficiais militares, da noite para o dia.
Ademais, gostaria de compartilhar com você o que sinto. Meus amigos testemunharam muitas vezes meus olhos se encherem de lágrimas ao ver como esses militares aposentados foram detidos. “Se, pelo menos, as pessoas que vestem esse honrado uniforme não tivessem que enfrentar essa situação”, eu disse. Porém, não estou em posição de interferir com as leis existentes ou fazer qualquer sugestão sobre esse contexto. Golpe é uma séria acusação e autoridades judiciais devem, conforme as regras que as governam, punir os responsáveis. Porém, talvez uma solução legal pudesse ter sido encontrada levando em consideração a idade e condições médicas daqueles mais idosos e acostumados a serem tratados com respeito a vida toda.
Me sinto e sempre me senti dessa forma. Vai contra os fatos dizer que foi o Movimento Hizmet que os colocou naquela situação. Um alto funcionário aposentado da polícia de inteligência deu uma entrevista, recentemente, a um jornalista. Meus amigos a leram para mim da Internet. “Nós informamos o senhor primeiro-ministro antes de todas as operações conduzidas”, ele disse. Essa declaração, mencionada em uma coluna, não foi negada pelo governo. Agora, temos o direito de perguntar: Se o governo sabia de todas as operações com antecedência, não é um grande pecado falar sobre conspirações e levantar suspeitas sobre certos grupos? Se, realmente, houve conspiração, porque vocês não agiram para pará-la no momento adequado? Se vocês sabiam, mas falharam em preveni-la, isso não os faria cúmplices da conspiração?
Julgamento arranjado contra o Hizmet está condenado ao fracasso
O Movimento Hizmet está sendo acusado de ser uma gangue ou organização [terrorista]. Há até rumores de que ele sofrerá repressão após as eleições [locais de 30 de março].
Infelizmente, muitas coisas têm sido ditas por raiva. Acredito que todos os insultos imagináveis foram feitos. Eles fizeram muitas coisas. Enquanto isso, acusações completamente injustas têm sido feitas. Após a campanha de nos estigmatizar como “organização [terrorista]” e “gangue”, esforços estão sendo feitos para influenciar o judiciário. Está claro, como foi dito em comícios eleitorais, que um processo judicial será lançado. Se nenhum crime foi encontrado (apesar dos esforços), é danoso ao senso de justiça forçar as leis além de seus limites para inventar um. Correto?
O conceito e acusação ambígua da existência de uma “estrutura paralela” se aplica, virtualmente, a todos os segmentos da sociedade. Ou seja, não há fim para a invenção de ofensas baseadas em crenças, ideologias, identidade em comum ou setores da população que trabalham em instituições públicas. Hoje, você declara uma comunidade específica como “estrutura paralela” ou “gangue”. No futuro, outros podem fazer o mesmo sobre outras comunidades. Assim, qualquer pessoa que trabalhe para o Estado e seja solidária a qualquer comunidade social, política ou religiosa pode ser acusada de filiação a um “Estado paralelo”. Além disso, ninguém pode garantir que aqueles que repetem essas acusações hoje não enfrentarão o mesmo no futuro. A prática de criar suspeitas sobre certas pessoas ou grupos com acusações infundadas destrói qualquer senso de imparcialidade, justiça e ordem.
Se um servidor público não obedece às ordens de seus superiores, há leis que regulamentam sentenças para seu delito. A inobservância é punida por lei. Contudo, se o problema é removido da esfera legal e milhares de pessoas são rotuladas e transferidas ilegalmente, essa opressão não pode ser explicada ou justificada neste mundo ou no próximo [i.e., no Dia do Julgamento].
Forçar as autoridades judiciais a inventarem crimes e abrirem processos seria uma grande opressão e o público em geral acharia isso inaceitável. Julgamentos arranjados não serão bem-sucedidos. Ademais, se você chama essas pessoas – que estão em total observância com as leis em sua vida – de gangue, as pessoas perguntarão: “Vocês [governo] trabalharam com essas pessoas por 12 anos e elas eram boas, mas após as investigações de suborno e corrupção, de repente, vocês perceberam que elas eram más. É isso?” Não devemos esquecer o verso recitado nos sermões de Sexta-Feira: “Deus vos comanda a agir com justiça.” Ou seja, Ele ordena que não violemos os direitos alheios.
Publicado em Today’s Zaman, 18 de março de 2014.