Entenda por que a Santa Sofia voltará a ser mesquita na Turquia
Ao mudar status de museu histórico da Santa Sofia, o presidente Erdogan distrai atenção de eleitores dos graves efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus.
A reconversão da antiga basílica de Santa Sofia em mesquita se encaixa no projeto político do presidente Recep Tayyip Erdogan de desmantelar o legado da Turquia como nação muçulmana secular, mas é também providencial: o país enfrenta a ressaca da pandemia do novo coronavírus e caminha para a segunda recessão em menos de dois anos.
Há 18 anos no poder — primeiro como premiê e depois como chefe de Estado — Erdogan parece ter encontrado um alvo para desviar a atenção de sua base eleitoral da grave crise econômica. Para isso, usou a influência junto ao Conselho de Estado, que funciona como um tribunal, reformulado a seu modo.
Joia da cultura bizantina, o monumento serviu como centro do cristianismo por 900 anos e como mesquita por meio milênio. Desde 1935, a antiga basílica Hagia Sophia, construída há 1.500 anos, funcionava como museu histórico em Istambul, por decisão do fundador da Turquia laica, Mustafa Kemal Atartuk.
A revogação de seu status, pavimentando o caminho para transformá-la novamente em mesquita, “eliminaria o orgulho que os turcos tinham de ser uma nação muçulmana secular”, conforme lamentou o escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura.
“Convertê-lo de volta a uma mesquita é dizer para o resto do mundo que infelizmente não somos mais seculares”, analisou o autor à BBC.
O presidente prevê em dez dias a celebração das primeiras orações na nova casa de culto muçulmana. A reconversão do complexo é simbólica: Istambul não necessita de mesquitas. O próprio Erdogan fez essa constatação há um ano, lembrando que os fiéis não costumam lotar a Mesquita Azul, que fica em frente à Hagia Sophia, nas orações das sextas-feiras. Mas os efeitos dramáticos da pandemia, que se somaram à crise econômica de 2018, fizeram o presidente rever seus conceitos.
Numa espécie de balão de ensaio, em maio passado, a Diretoria de Assuntos Religiosos da Turquia promoveu a leitura do Alcorão na Santa Sofia para celebrar o aniversário da conquista de Istambul. Com a transformação do museu em mesquita, Erdogan desagradou ao Papa Francisco e aos patriarcas das Igrejas Ortodoxas russa e grega. A Unesco protestou, assim como acadêmicos que lidam com arte bizantina.
Ávido para recuperar a popularidade e superar as divisões em seu partido, o AKP, o presidente esnobou as críticas, qualificando-as como ataques à soberania turca. Desde que iniciou sua empreitada ao poder, Erdogan moldou o país de volta às bases de sua identidade islâmica, desmontando as do secularismo.
Liberou o uso do véu e promoveu o ensino religioso com o objetivo de formar uma nova geração de fiéis. A Turquia de Erdogan já não implora para ingressar na União Europeia. Ajustou seu território — uma ponte entre a Europa e o Oriente Médio — como epicentro regional.
Após sufocar uma tentativa de golpe, há quatro anos, concentrou poderes e reformou a Constituição para ampliar o alcance do mandato presidencial. Expurgou a dissidência e lotou as prisões de opositores.
Nas últimas eleições municipais, o presidente sentiu os sinais de desgaste do eleitorado. O AKP foi derrotado em Istambul, Ancara e Esmirna. A pandemia de Covid-19 agravou o quadro, com mais de 200 mil infectados e 5.300 mortos. O turismo congelou, a inflação e o desemprego dispararam, em contraponto com a queda da produção industrial.
Erdogan, que os críticos chamam de sultão, recorreu à mudança de status na Hagia Sophia — sinônimo de Sagrada Sabedoria em grego — para satisfazer de uma só vez conservadores religiosos e nacionalistas. A terapia pode até desafogar a pressão, mas dificilmente levará à cura.