Gatos turcos esgotam ingressos de cinema da moda em NY
O desenho animado “Lego Batman: O Filme” e a produção de sadomasoquismo para iniciantes “Cinquenta Tons Mais Escuros” dominaram as vendas de ingressos nos cinemas americanos durante o último fim de semana, assumindo respectivamente o primeiro lugar e a vice-liderança na bilheteria. Mas foi um documentário de 79 minutos produzido na Turquia, em cartaz em apenas um cinema americano, que produziu resultados impressionantes. Os ingressos para as 21 sessões de fim de semana do Metrograph – um dos mais charmosos cinemas de Nova York, situado na fronteira entre os bairros do Lower East Side e Chinatown – se esgotaram em poucas horas. Na noite de domingo (12), a pequena distribuidora Oscciloscope e o cinema conheciam o maior êxito de suas existências. A distribuidora foi lançada em 2008 e o Metrograph comemora um ano no mês que vem. O nome do documentário entrega a razão do sucesso: “Kedi”, dirigido pela cineasta Ceyda Torun, significa “gato” em turco. O poder dos gatos continua a impressionar, agora também nos cinemas.
A ação de “Kedi” se passa nas ruas de Istambul, geralmente durante o dia (raras cenas noturnas realçam ainda mais a beleza da cidade). A cineasta acompanha uma turminha de sete gatos de personalidades marcantes, e que dividem o mesmo destino: são todos sem-teto, que se aproveitam da bondade da população turca.
Ancorado por um elenco coadjuvante de quatro patas gigantesco, os gatos principais de “Kedi” cruzam ruas da cidade, filam comida em peixarias, andam de barco, brigam no cemitério, ignoram os cachorros, defendem seus territórios em oficinas mecânicas e criam sua prole em caixas de isopor na zona portuária.
Tem a Psikopat, a “gata mais psicopata do bairro” e que afugenta fêmeas que dão em cima do “marido” dela. Tem o Duman, um elegante “príncipe” de patas sujas, gourmet total, que faz ponto na frente de um restaurante da moda (o chef do local prepara a comida preferida do felino: peru com pedacinhos de queijo manchego). Tem a gata alaranjada Sari, obstinada na coleta de nacos de pão nos quarteirões próximos de sua casa (lobby de um prédio antigo) para alimentar a faminta e ruidosa prole. E tem Aslan Parçasi (jogo de palavras que significa ‘impressionante como um leão’), que deixa um restaurante à beira do rio e frequentado por jovens turcos totalmente isento da presença de roedores nojentos.
“Kedi” está longe de ser uma obra-prima. A diretora deixou de fora o outro lado da gataiada de Istambul. Como a prefeitura e as clínicas veterinárias lidam com o “problema” é contraponto ausente. Muito menos aparece o convívio conturbado entre os gatos de ruas e seus inimigos humanos.
Mas é o lado antropológico do relacionamento de alguns turcos com os gatos que torna o documentário cativante. Há desde a dona de uma loja de roupas que fala o trivial esotérico (“gatos absorvem toda sua energia negativa”) até a prosaica história de um pescador que passou a amar gatos após um golpe de sorte. Ao perder o barco e todos bens dentro dele durante uma tempestade, precisava de 120 liras para quitar uma dívida. Encontrou a exata soma quando decidiu investigar um gatinho que miava muito. O felino estava com as patas dianteiras em cima de uma carteira perdida.
Já o cartunista Bülent Üstün explica que, ao enterrar gatos que encontrava sem vida pelas ruas, começou a improvisar cruzes feitas de graveto para a sepultura deles como ele viu no faroeste “Três Homens em Conflito”, de Sergio Leone. “Meu pai ficou tão preocupado com a simbologia cristã, achando que eu estava me convertendo, que ele disse que ia me mandar outra vez para o madraçal (escola islâmica)”, zomba o artista em depoimento no filme.
Mas é um turco de meia idade que sintetiza o misticismo produzido pelos gatos. “Cachorros acreditam que as pessoas são uma espécie de Deus, mas os gatos, não. Gatos sabem que as pessoas agem como intermediários da vontade de Deus. Eles não estão sendo ingratos. É apenas que eles sabem melhor das coisas”.
Por Marcelo Bernardes
Fonte: folha.uol.com.br