Dia 24 de janeiro: Dia dos Advogados em Situação de Perigo
Há exatos quarenta anos, quatro advogados foram assassinados em um escritório em Madri, Espanha, episódio que ficou conhecido como o massacre de Atocha, em referência ao endereço da banca de advocacia. O episódio ocorreu no período de transição que seguiu à morte do ditador Franco em 1975, quando a Espanha estava na iminência de uma guerra civil. Dos assassinos, filiados a partidos e organizações de extrema-direita, apenas um foi condenado pelo crime.
Na década de 1990, a Organização das Nações Unidas (ONU), durante o Oitavo Congresso sobre Prevenção da Criminalidade e Tratamento de Ofensores, ocorrida em Havana, Cuba, adotou o pouco conhecido documento Princípios Básicos sobre o Papel dos Advogados. Em síntese, o diploma manifesta que a proteção adequada dos direitos humanos e das liberdades fundamentais exige o acesso efetivo a serviços jurídicos prestados por uma categoria profissional própria e independente dos Poderes Constituídos: os advogados.
Reconhece o Documento que as associações profissionais de advogados devem ser autônomas e que possuem vital a desempenhar na defesa das normas profissionais e da ética. Elas devem proteger os seus membros de perseguições, de restrições e da criação de infrações que lhes neutralizem, prestando serviços jurídicos a todos os que deles necessitam e cooperando com as instituições governamentais e outras na persecução de seus fins.
Dos consideranda constam as usuais remissões aos tratados internacionais de direitos humanos que fundamentariam o Documento: Declaração Universal dos Direitos do Homem, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão, Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Crime e de Abuso de Poder.
No mérito, os Princípios estabelecem o direito de todos à assistência de um advogado da sua escolha para proteger, estabelecer os seus direitos e para os defender em todas as fases do processo penal. Também estabelecem aos governos o dever de assegurar que esses serviços sejam prestados inclusive aos hipossuficientes, mediante assistência jurídica gratuita ou advogado dativo. Nos casos de encarceramento, o documento prevê o acesso imediato do constrito a um advogado, no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas da detenção, além da visitação frequente do advogado ao seu cliente.
Mais ainda, o documento internacional estabelece que os governos devem assegurar que os advogados possam exercer todas as suas funções profissionais sem intimidação, impedimento, assédio ou interferência indevida; possam viajar e consultar livremente os seus clientes no seu país e no exterior; tenham acesso a informações, arquivos e documentos adequados para a defesa; não sofram, nem sejam ameaçados com ações penais ou sanções administrativas, econômicas ou outras por qualquer ação tomada de acordo com deveres, padrões e éticas profissionais reconhecidos; e possam exercer sua liberdade de associação e expressão sem mitigações, motivo por que são imunes civil e penalmente pelas declarações pertinentes feitas de boa-fé ou perante tribunais ou autoridades legais e administrativas.
O rosário de direitos e garantias do profissional da advocacia (e do indivíduo que exerça função correlata, em países nos quais não haja regulamentação da profissão), consignados nos resultados do Oitavo Congresso, parecem uma absoluta obviedade, porquanto incorporados há tempos pelo nosso ordenamento jurídico por meio de seus mais variados diplomas. Ele é, com efeito, caudatário da lenta evolução da consciência jurídica da comunidade internacional, de que é prova o fato de que a prática de realizar conferências internacionais sobre questões de controle da criminalidade data de 1872, quando conferências foram realizadas sob os auspícios da então vigente Comissão Internacional de Prisões, que, mais tarde, se tornou a Comissão Internacional Penal e Penitenciária (IPPC). Em 1955, o primeiro congresso onusiano foi realizado na primeira sede da Organização, em Genebra, e hoje se encontra na sua 13ª (décima terceira) edição.
A despeito dessa evolução progressiva e longeva que, conforme visto, tornou sólido o entendimento acerca dos pressupostos para o exercício da advocacia, alguns princípios podem soar, para leigos, como frivolidades, quando, ao revés, são revestidos de elevada importância para o desempenho de suas funções. Refiro-me, em particular, à prerrogativa de sigilo de comunicações entre advogados e clientes e ao direito de não serem identificados ou confundidos com seus clientes ou com as causas de seus clientes como resultado do desempenho de suas funções. Trata-se, esse último, da conhecida “criminalização do advogado”, ou seja, do julgamento social pejorativo à figura do advogado em razão do seu cliente ou de suas causas.
Claro é que, no estudo de fontes do Direito Internacional Público, essa declaração de princípios, bem como outras, de que os Princípios Básico Relativos à Independência da Magistratura, resultado do Sétimo Congresso, é exemplo, não é um documento legalmente vinculante. Pertencem à soft law, mas podem consolidar-se como costume internacional, do qual pode eximir-se a figura do objetor permanente, desde que os direitos costumeiros não sejam normas imperativas de direito internacional, ou seja, normas tão fundamentais e centrais aos direitos humanos que não podem ser derrogadas em nenhuma circunstância. Embora nenhum julgado da Corte Internacional de Justiça (CIJ) tenha tido por objeto os feixes de princípios manifestados pelo Congresso sobre Prevenção da Criminalidade e Justiça Criminal (nome atualizado), não é difícil prever entendimento garantista, tradicional à CIJ.
Se a plêiade de premissas para o exercício da advocacia encontra-se em uma linha evolutiva sincopada em países relativamente estáveis e garantidores da regra de Direito, em vários outros padece de incerteza e suporta constantes ataques.
Por esse motivo, diversas associações de advogados do mundo têm se filiado à iniciativa Dia do Advogado em Situação de Perigo, sendo a última a seccional de Paris da Ordem dos Advogados da França (janeiro de 2016). Algumas são manifestas doadoras, como a Associação de Advogados Democráticos Europeus, a Associação Europeia de Advogados para a Democracia e os Direitos Humanos no Mundo, a Associação de Advocacia Social da Holanda, a Advogados por Advogados, o Instituto Europeu de Direitos Humanos, a Advogados sem Fronteiras e a Grupo de Advocacia do Reino Unido Colombia Caravana.
O Secretariado da Fundação O Dia do Advogado em Situação de Perigo é exercido “pro bono” pela banca de advocacia Gaasbeek & Gaasbeek Advocaten, sediada em Haarlem, Países Baixos. Criada em 2014, a Fundação visa a alertar a comunidade internacional de que advogados, em diversas partes do mundo, são assediados, silenciados, pressionados, ameaçados, perseguidos, torturados, quando não assassinados e sujeitos a desaparecimento forçado. No ano de 2016, a Fundação ultimou relatório sobre a situação de perseguição a advogados no Irã, na Turquia, no País Basco, na Colômbia e nas Filipinas. Neste ano, o Secretariado se debruçará sobre a situação na quase vizinha Honduras.
A triste efeméride de hoje nos recorda que, se a evolução histórico-cognitiva dos direitos humanos não admite retrocessos, a sua realização na vida prática é resultado de batalha incessante, que não permite concessões em face a circunstâncias excepcionais, ainda que com propósitos eivados de mérito. As prerrogativas dos advogados seguem esse mesmo curso. Pacificadas pela doutrina e reconhecidas na comunidade jurídica elas são, na verdade, conquistadas e reafirmadas dia-a-dia em órgãos jurisdicionais e administrativos, tendo, por vezes, em desfavor, os humores da opinião pública leiga que, em ira santa, pode concorrer para a redução do escopo protetivo de seus próprios direitos pela via do aviltamento das prerrogativas dos advogados.
No plano fático, sim, as prerrogativas sofrem distorções e apequenamentos. A Turquia, o Tigre Econômico e Democrático da Anatólia por longa data, comprova os perigos fatais das sinuosas curvas da história, feitas de ânimos raivosos e humores instáveis.
Clarita Costa Maia
Credito da Foto:
Iryna Glushchenko
Palácio da Paz, Países Baixos
Fonte: http://cliquebrasilia.com.br