Detentos turcos poderiam perder o direito de apelar ao Tribunal Europeu
Os advogados da Turquia têm vária razões para temerem a promessa do Presidente Recep Tayyip Erdogan de restabelecer a pena de morte depois de aboli-la mais de uma década atrás para cumprir com os padrões da União Europeia.
A perspectiva de ver clientes enviados ao corredor da morte é o suficiente para dar arrepios a qualquer advogado. Mas trazer de volta a pena capital também significaria o fim das há muito tempo paradas conversas de adesão com a União Europeia, removeria suas obrigações de cumprir com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e cortaria o acesso à instituição que os advogados turcos vieram a considerar como a última via que restava para a justiça: o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH).
Para muitos das dezenas de milhares dos que foram detidos após o golpe fracassado de julho passado, o TEDH emergiu com sua única esperança. Poucos confiam no judiciário da própria Turquia para dar uma consideração justa a seus casos; além disso o enorme número de casos — juntamente à demissão de mais de 4.000 juízes e promotores, um quarto do total — lançou os tribunais no caos.
Os réus frequentemente definham na prisão por meses sem verem um indiciamento; uma clara violação do direito fundamental à liberdade, argumentam os advogados. Ainda assim, pedidos de fiança bem sucedidos são tão raros que um número crescente de advogados turcos estão se voltando para Estrasburgo para tirarem seus clientes da detenção.
“Não esperamos muito do sistema turco”, disse Veysel Ok, um advogado da mídia que deu entrada em vários pedidos no TEDH em nome de vários jornalistas proeminentes, incluindo o correspondente turco-alemão Deniz Yucel, que foi detido no começo deste ano. “Nossa estratégia de defesa está baseada em futuros pedidos ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”
O TEDH e o governo turco podem em breve entrar em conflito por causa dessa estratégia, contudo. Advogados como Ok não estão meramente pedindo ao Tribunal Europeu que anule Ancara, mas que permita-lhes contornar os tribunais turcos completamente — assim derrubando um precedente do TEDH de longa data que requer que os requerentes esgotem todas as opções domésticas antes de se dirigirem a Estrasburgo.
Impasse doméstico
O Tribunal Constitucional, o entidade jurídica suprema da Turquia, ainda está para dar o veredito a um único caso sequer relacionado ao golpe fracassado de julho passado. Dois de seus próprios membros estão na prisão, e diz-se que o acúmulo de recursos pendentes esteja no número de 100.000. A paranoia domina nas instâncias inferiores, com poucos juízes corajosos o suficiente para desafiarem o governo.
O judiciário turco ficou muito politizado e disfuncional para ser considerado uma opção doméstica efetiva, argumentam os advogados. Depois de esperar por quatro meses para que o Tribunal Constitucional respondesse a vários recursos às detenções preventivas de seu cliente, Ok foi direto ao TEDH.
O governo da Turquia, enquanto isso, insiste que o sistema judicial está funcionando de forma suave e avisou que uma ordem do TEDH de soltura dos detento turcos poderia desgastar ainda mais as relações entre Ancara e a Europa. No começo deste ano, o primeiro-ministro turco, Binali Yildirim disse que o TEDH “estaria ultrapassando sua jurisdição” com uma decisão como essa.
No entanto, apesar dos avisos de Ancara, o TEDH pare pelo menos um pouco simpático ao argumento dos advogados turcos.
Em março, Thorbjorn Jagland, o secretário geral da Organização dos Direitos Humanos para o Conselho da Europa, disse que os casos de jornalistas e parlamentares em prisão preventiva devem ser ouvidos nos tribunais turcos. Mas ele avisou: “Se os casos deles não forem considerados em breve pelo Tribunal Constitucional Turco, o Tribunal Europeu provavelmente considerará se isso é uma solução doméstico efetivo, e apenas começar a lidar com as queixas deles”.
No final de março, o TEDH aceitou os casos de Ahmet Altan e Sahin Alpay, dois jornalistas representados por Ok que passaram mais de 10 meses em prisão preventiva. O tribunal também pegou os casos de outros jornalistas detidos nos últimos meses, incluindo o de Deniz Yucel e a equipe editorial presa do jornal crítico Cumhuriyet.
Em mais um aceno aos casos turcos de detenção, o TEDH na semana passada expandiu sua política de prioridade para incluir a “privação de liberdade” em sua categoria da mais alta urgência, além do “risco à vida ou saúde do requerente”. Sob a política atualizada, os clientes de Ok — e muitos outros — teriam, portanto, seus casos acelerados pelo tribunal de Estrasburgo.
O ministério da justiça se recusou a fazer comentários para este artigo.
Uma batalha de Sísifo
Há pouca dúvida de que os tribunais da Turquia estejam em desordem. Como parte de um expurgo abrangente do governo, mas de 4.000 juízes e promotores foram demitidos, seus assentos rapidamente preenchidos com recrutas inexperientes. Os advogados dizem que lidar com cerca de 20 juízes vindo direto da faculdade de direito não é incomum.
Com o número de detidos nas prisões turcas crescendo diariamente, não há sinais de melhora — pelo contrário. A nova constituição, aprovada por uma minúscula minoria de eleitores em uma controverso referendo em abril deste ano, irá politizar ainda mais o judiciário: Erdogan e o parlamento turco, atualmente dominado pelo seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento, agora nomeará todos os membros do supremo conselho disciplinar do judiciário, colocando os tribunais sob o controle do presidente. (Anteriormente, metade dos membros do conselho eram selecionados por seus colegas.)
“Não. Está. Funcionando”, disse Ramazan Demir, um advogado dos direitos humanos, pontuando cada palavra com uma batida em sua mesa. “Um de meus clientes foi detido por cinco meses, e nesses cinco meses, o caso teve três diferentes juízes. Eu tive que explicar o caso para eles. Eles são muito jovens e ignorantes, os novos. Um amigo meu foi colocado em um tribunal criminal como juiz logo depois de sua formatura na faculdade de direito. Você consegue imaginar? Você precisa de pelo menos 10 anos de experiência no campo para se tornar um juiz”.
Demir, também, deu entrada em vários pedidos no TEDH, argumentando que o Tribunal Constitucional não está acessível aos seus clientes. Entre outros, ele representa os parlamentares detidos do HDP, partido de oposição pró-curdos, que foram presos na segunda metade do ano passado. “Não ser capaz de impedir as prisões está me matando por dentro”, disse ele.
Poucos juízes ousam dar uma decisão contra o governo e soltar críticos que foram detidos. As consequências são bem conhecidas: quando juízes ordenaram a soltura de 21 jornalistas em abril, eles foram prontamente suspensos, e os jornalistas foram detidos novamente. Os advogados frequentemente sentem que estão lutando uma batalha de Sísifo. “Temos a sensação que não mais somos úteis no sistema de justiça turco porque nada que fazemos tem qualquer efeito”, disse Ok.
Os advogados frequentemente reclamam que o governo está interferindo na defesa, ao monitorarem e gravarem as reuniões com seus clientes ou confiscarem documentos, por exemplo. Frequentemente os advogados ficam no escuro acerca das exatas acusações contra seus clientes por meses, pois os promotores não têm pressa com os indiciamentos. No caso contra os jornalistas do Cumhuriyet, o jornal pró-governo Sabah tiveram acesso ao indiciamento antes que os advogados do Cumhuriyet tivessem.
“Quando me encontro com os meus clientes na prisão, um guarda vem e escuta e tem uma câmera na sala”, disse Ok. “E documentos desaparecem. Por exemplo, Ahmet Altan preparou uma defesa escrita a mão mas os guardas confiscaram ela. Deveríamos ter recebido ela, mas não sabemos onde está”.
Combine isso com relatos de maus tratos e até tortura em prisões turcas, e não é nenhuma surpresa que a agitação na Turquia se fez sentir em Estrasburgo. Atualmente, cerca de um quarto dos casos em pendência no TEDH — 23.000 — foram apresentados contra Ancara.
De acordo com o registro do tribunal, 17.630 desses foram apresentados desde o golpe fracassado em 15 de julho do ano passado. Em janeiro, quando esse número estava em 5.300, o presidente do TEDH, Guido Raimondi avisou que o tribunal poderia ficar “submergido” se os casos turcos não fossem processados em tribunais domésticos. O número de casos que vão até Estrasburgo também marca um espantoso aumento comparado a anos anteriores — 2.212 casos foram apresentados contra a Turquia em 2015 e 1.584 em 2014.
Mas se o presidente deles fizer jus à sua promessa, os turcos talvez não possam confiar no tribunal de Estrasburgo por muito tempo. Depois de jurar reinstalar a pena de morte caso seus partidários e o governo lhe peçam, Erdogan fez emergir a ideia de um referendo sobre a questão.
Reintroduzir a pena capital teria o efeito colateral de encerrar tanto o processo de adesão do país à União Europeia e sua filiação à Organização dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, e assim liberando Ancara de qualquer obrigação de seguir as decisões do TEDH.
Para advogados dos direitos humanos e seus clientes, é uma projeção desastrosa, diz Veysel Ok: “Se a Turquia deixar o Conselho da Europa, nós podemos muito bem desistir”.
Por ZIA WEISE
Fonte: www.politico.eu