Conversa com ex oficial turco da OTAN que foi expurgado
Vocal Europe: Pode falar sobre você? Quando você entrou no exército, que tipo de posições oficiais você até agora manteve? Qual foi sua última responsabilidade como um militar turco na sede da OTAN em Bruxelas?
Oficial expurgado: Eu entrei no exército turco em 1985. Eu comecei a estudar na Academia das Forças Armadas e me formei em 1989. Passei por treinamento de oficial na Turquia e no exterior. Servi em várias unidades das Forças Armadas. Consegui meu mestrado nos Estados Unidos. Como muitos outros oficiais expurgados, sou um oficial do Estado-Maior, formado no Escola Superior de Guerra. Trabalhei em vários cargos nacionais e da OTAN como planejador operacional. Quase dois meses depois da tentativa de golpe, minha designação à OTAN foi cancelada, depois disso fui chamado de volta juntamente a 270 outros oficiais no exterior, para uma “Investigação Judicial”. Estando na Europa, na época, eu não poderia ter sido parte do golpe. Mas quando vi que os primeiros 17 oficiais que voltaram foram detidos e tratados mal, decidi esperar até existir um Estado de Direito no país que servi por muitos anos.
VE: Pode nos contar sua opinião sobre a tentativa de golpe em 15 de julho de 2016? O golpe foi montado por uma coalizão de grupos entre os militares turcos ou o golpe foi arquitetado por gulenistas (apoiadores e simpatizantes de Fethullah Gulen)?
OE: Acredito que os envolvidos são de três tipos. Antes de eu explicar quem esses são, minha análise vem da crença de que a execução extremamente pobre do golpe e os eventos que vieram logo em seguida destacam que a tentativa de golpe não tinha o objetivo de derrubar o governo, mas que foi planejada para ser um fracasso desde o início. Não acho que exista tantos gulenistas assim nas forças armadas, especialmente não nas patentes mais altas. Para mim, foi uma aliança de conveniência entre Erdogan e os Ultranacionalistas. O golpe foi usado como uma desculpa para Erdogan se livrar da elite secular e dos que se opunham às suas políticas e para os Ultranacionalistas conseguirem um papel proeminente nas Forças armadas e impôr seus planos eurasianos. Existem várias inconsistências que se poderia encontrar na tentativa de golpe “mais atrapalhada” na história turca (Tenha em mente que as Forças Armadas Turcas não são estranhas a golpes, elas teriam sido bem sucedidas se houvesse uma tentativa real). Os três tipos de pessoas envolvidas no golpe são:
1: Um grupo muito pequeno que iniciou a tentativa de golpe e saiu de cena depois disso.
Esse é o grupo que arquitetou o complô do golpe. Julgando por quem se beneficiou com a tentativa de golpe; esse grupo incluía os Ultranacionalistas (Grupo Perincek), e os que tem laços com o regime de Erdogan ou que simplesmente foram comprados.
2: Os que acreditavam que o golpe estava sendo feito na cadeia de comando, e portanto obedeceram as ordens.
Este incluía seculares e outros opositores a Erdogan, que estavam conscientes das listas de expurgo circuladas amplamente e que portanto podem ter se sentido aliviados pelo o que pensaram fosse um golpe sendo feito pela cadeia de comando. A elite secular já estava por aqui com as políticas de Erdogan.
3: Os que viram o golpe como uma oportunidade de subir de patente.
Esses simplesmente não se importaram muito se o golpe estava sendo feito pela cadeia de comando ou não, mas viu a ação como uma oportunidade de subir de patente.
VE: Por que o presidente turco Recep Tayyip Erdogan está culpando o movimento de Fethullah Gulen pelo golpe? E, você é um gulenista?
OE: Não, não sou um gulenista. Erdogan culpou os gulenistas pela simples razão de animosidade. Erdogan deve suas vitórias nas urnas por anos aos “inimigos” que ele habilidosamente criou em todos os lugares e momentos. Os gulenistas são os últimos. Antes deles, ameaças externas como a CIA, os EUA e os internos como os curdos, alevitas e até secularistas foram alvos durante os comícios do AKP.
Muitos na Turquia acreditam que as fitas vazadas em 17 a 25 de dezembro de 2013, onde Erdogan e seu filho conversavam sobre como esconder o que parecia amontoar em mais de um bilhão de dólares em dinheiro, foram feitas por gulenistas na polícia. O expurgo não é novo, na verdade a polícia foi expurgada começando já em 2013. Mas Erdogan sabia que precisava de uma ferramenta mais forte para se livrar de toda a oposição nas Forças Armadas. Elas não poderiam ser moldadas com designações executivas, como foi feito com a polícia. Portanto ele decidiu promulgar um estado de emergência e usar os poderes imensos que ganharia.
VE: Por que você foi dispensado da sua posição pelo governo turco? Alguma evidência relacionando você ao golpe? E, quantos colegas turcos seus trabalhando na OTAN enfrentaram a mesma consequência?
OE: Eu estava na Bélgica na época do golpe. Não há evidências de quaisquer oficiais turcos na Bélgica ou no exterior se envolvendo. Se houvesse qualquer evidência, o regime teria colocado tudo na boca da mídia. A única tentativa que fizeram é alegar que os que estavam no exterior planejaram tomar embaixadas, para que propósito e com que armas eu não sei. Isso apareceu na mídia várias vezes e estava aparente que eles estavam tentando colocar a culpa apesar da realidade.
Dois terços dos funcionários turcos na Bélgica estiveram na mesma situação, o que dá em mais de 60 funcionários. A proporção muda entre meio a três quartos em diferentes Quartéis Generais na OTAN. Existe uma boa foto que colocamos em uma de nossos tweets em que riscamos os expurgados com um X. Isso mostra a severidade da situação. Logo depois que a tentativa de golpe falhou, o governo começou a tomar medidas rápidas, dolorosas e duras para não apenas punir “os atores” mas também remodelar a estrutura estatal. Colégios militares e escolas superiores de guerra foram fechados sob o pretexto de seu atual status: “inclinados a recrutar e educar membros de uma organização terrorista”. Desde a “golpe-ficção”, mais de 4.000 soldados foram dispensados do exército, força aérea, marinha, gendarmeria e guarda costeira. O número total dos que foram dispensados nos expurgos pós-golpe alcança 124.000. Por volta de 89.000 detidos e 43.000 presos. Não tenho certeza se o governo possui qualquer evidência legal e válida para culpar todas essas pessoas por estarem envolvidas na tentativa de golpe de alguma forma.
O dia 15 de julho também será lembrado como um ponto de reviravolta em termos de seus impactos profundos sobre a qualidade, práticas tradicionais e eficiência organizacional dos funcionários das Forças Armadas Turcas como um todo. A assim chamada tentativa de golpe, diga-se “golpe-ficção”, abriu caminho para eliminar oficiais de alta qualidade e oficiais subalternos enquanto abria uma oportunidade para os que não são suficientemente capazes de preencher os cargos relevantes, que requerem competência profissional e também valores elevados pessoais tais como autodedicação, comprometimento e senso de responsabilidade. Ao se dar uma olhada rápida no público-alvo do golpe-ficção, pode-se facilmente perceber os atributos em comum dos militares turcos que foram, primeiramente, dispensados, e então presos logo após 15 de julho do ano passado.
Pessoalmente, eu não sei porque fui dispensado. Nunca me disseram a razão específica. Fui dispensado com um decreto alegando que eu tinha laços com o terrorismo, juntamente a 15.000 outras pessoas. Mas entendo que alguns são dispensados devido aos seus perfis. Eu tenho uma extensa educação nos EUA, provavelmente não me encaixei bem no novo clique eurasiano, que está dominando as Forças Armadas Turcas. Eu era uma oficial muito bem-sucedido. Fui designado a cargos de alto perfil em quartéis-generais estratégicos. Uma carreira de sucesso com uma educação sólida acabou se tornando um impendimento na nova Turquia.
VE: Após o expurgo, você teve qualquer contato com seus colegas estrangeiros que trabalham na OTAN? Se sim, quais são suas reações ao seu caso pessoal?
OE: Eu tive muito apoio de meus colegas estrangeiros. Eles têm sido muito compreensíveis. Estivemos trabalhando por anos, eles me conhecem bem. Eles são todos oficiais bem educados. Eles viram as similaridades entre o que está acontecendo agora e o que aconteceu com outras ditaduras. Eles ofereceram ajuda. Alguns me ofereceram ir a seus países e ficar em suas casas vazias. Alguns encontraram advogados de imigração e outros tentaram encontrar um trabalho para a gente. Fiquei muito impressionado com a reação de um amigo, para quem tínhamos trabalhado por um longo tempo, quando ele disse: “Não entendo exatamente o que está acontecendo, mas te conheço. Vou te apoiar a cada passo, apenas venha e fique com a gente. Vamos descobrir o que fazer mais tarde”.
Eu gostaria de agradecer todo o apoio e gentileza deles durante este período difícil.
VE: Em vez de voltar para a Turquia para um julgamento, por que você decidiu ficar na Bélgica?
OE: Se não existe um Estado de Direito, não há garantia que você não sofreria um destino horrível. Desde o golpe, ocorram mais de 50 suicídios (!!) dentro das cadeias. Os jornais estão repletos de fotos de oficiais torturados. Houve rumores de matanças em massa planejadas nas cadeias muito parecido com o que Qaddafi fez na prisão Abu Salim em 1996, onde 1.270 presos foram mortos. Não acredito que o regime de Erdogan planeje um processo judicial normal para os que estão na cadeia. Se os que estão na cadeia testificassem, então isso poderia revelar os reais planejadores do golpe. Acredito esta é uma das razões do porque há uma proibição sobre a mídia quanto a testemunhos vazados. Portanto acredito que os que estão na Turquia e especialmente os que estão na cadeia estejam sob um grande perigo.
VE: Você se sente inseguro aqui na Bélgica, dadas as declarações de várias autoridades turcas de que “os que tem um dedo no que aconteceu em 15 de julho serão levados de volta à Turquia a qualquer custo”?
OE: Penso que existe uma possibilidade disso acontecer. Recentemente, a Turquia passou uma lei que deu permissão para a agência de inteligência de conduzir operações em outros países. Portanto há uma chance. Por isso eu não posso correr nenhum risco quanto a minha segurança e a da minha família. Levando em conta que as pessoas pró-Erdogan que vivem na Europa são alvos fáceis para a Inteligência Turca coletar informações, tento organizar minha vida como for apropriado para não correr quaisquer riscos. Eu também sei que alguns oficiais de alta patente do Exército Turco forneceram ao Estado-Maior Turco uma lista de oficiais que deram entrada no pedido de asilo na Bélgica.
Existe alguns casos que aconteceram recentemente, que fortificam meu pressentimento. A tentativa de busca na casa de um ex adido da defesa feita pelo embaixador turco, as atividades de coleta de informação feitas por vários órgãos governamentais turcos na Europa são boas razões para se sentir inseguro até certo ponto.
VE: Existe alguma ligação entre o expurgo que continua a acontecer entre os militares turcos e a influência crescente da Rússia sobre o exército turco? Se sim, que tipo de problemas que essa nova situação pode criar entre a Turquia e a OTAN nos próximos anos?
OE: Não é uma coincidência que os eurasianistas substituíram o quadro pró-ocidente nos papéis proeminentes nas Forças Armadas, especialmente pelas mãos do Grupo Perincek. Isso explica porque 150 dos 300 generais/almirantes foram dispensados depois da tentativa de golpe, apesar da quantidade bem pequena de forças envolvidas (2 a 3 companhias, dois tanques, menos de 10 combatentes, dois navios). De fato, se 150 generais fossem realmente conspirar em favor do golpe, uma força armada com a força de 400.000 homens definitivamente seria bem sucedida. Enquanto que os militares pró-OTAN e pró-Ocidente foram eliminados por meio de práticas ilegais, os lugares vazios foram preenchidos por um pessoal que estão fixos na ideia de que o destino da Turquia deve estar ligado à Eurásia ao invés de ao Ocidente. A Turquia, como um membro da OTAN, está atualmente sob a influência dos que optam pelo triângulo Rússia-Irã-China perante a opção OTAN/União Europeia, que põe em perigo a estabilidade regional a médio prazo.
É também muito interessante que os eurasianistas demonstraram um esforço distinto de reatar as relações com a Rússia depois que o caça russo foi abatido em novembro de 2015. Existe um bom vídeo onde o eurasianista Alexander Dugin conta sobre a visita eurasianista a Moscou, em que pedia aos russos que fizessem as pazes com Erdogan. Também é interessante que o mesmo Dugin estava na Turquia até um dia antes da tentativa de golpe. A aliança entre os eurasianistas e Erdogan é contraintuitiva e poderia apenas significar que eles estão cooperando para se livrarem do quadro pró-ocidente. Parece ter funcionado. Erdogan conseguiu o que queria com poderes recém-adquiridos e os eurasianistas se beneficiaram com o controle das forças armadas.
Como a OTAN vai confiar na Turquia se esse país acabou de assinar um acordo de compartilhamento de inteligência com a Rússia? Outro evento recente são as operações aéreas conjuntas com a Rússia na Síria. Apesar de não sem uma operação da OTAN, culpar os EUA por não apoiarem a Turquia nos ataques aéreos e ao mesmo tempo não pode ter qualquer fundamentação lógica por detrás disso. É simplesmente inaceitável.
Ainda mais, com o crescente número de oficiais pró-Rússia entre os militares turcos, não seria nenhuma surpresa testemunhar qualquer perturbação no processo crítico de modernização e/ou revés nos comprometimentos nacionais com a OTAN, que por sua vez afetará a eficiência geral da OTAN contra um amplo espectro de ameaças em uma região está se aquecendo. Além disso, ignorar princípios básicos dos direitos humanos e do Estado de Direito faz a Turquia ser imprevisível nos olhos de seus aliados, e portanto fomentando a falta de confiança.
EXPLICAÇÃO: Por razões de segurança, o Vocal Europe decidiu publicar esta entrevista aplicando um criptônimo como nome do militar turco expurgado que gerencia a conta @purgedNATO no Twitter.
Fonte: www.vocaleurope.eu