Os expurgos enfraqueceram os uma vez poderosos militares turcos
As demissões em massa depois da tentativa fracassada de golpe em 15 de julho de 2016 criaram uma ansiedade generalizada entre os militares turcos. Um exército enfraquecido e a perda de oficiais de alta patente está se tornando um problema para a OTAN.
Eyup Ozcan é um dos mais talentosos soldados de sua geração. Ele se formou na academia militar em Istambul com notas excelentes e também estudou na Escola de Pós-Graduação Naval em Monterey. Ele serviu na Bósnia e comandou um batalhão em Ancara antes de se transferir para a OTAN na Bélgica em 2015. Seu caminho para comandar as forças armadas turcas pareciam ter sido claramente mapeadas.
Agora Ozcan está sentado em um prédio de escritórios em Bruxelas e diz que se sente como um prisioneiro. Ele veste um terno amarrotado em vez de seu uniforme e o passaporte diplomático em sua maleta não é mais válido. O governo turco sob o Presidente Recep Tayyip Erdogan suspendeu Ozcan do serviço, suspeitando de ele ter participado na insurgência militar de 15 de julho. Ozcan agora entrou com um pedido de asilo político na Bélgica. Ele teme ser preso se retornar à Turquia, assim como já aconteceu a muitos de seus camaradas.
Na sequência da tentativa de golpe, Erdogan tem sido duro na repressão sobre os suspeitos de conspiração. Ele demitiu quase 100.000 servidores públicos enquanto que os governadores de 47 distritos e os reitores de todas as universidades turcas foram forçados a renunciar. Quase 200 organizações midiáticas também foram forçadas a fecharem. Mas nenhuma instituição foi atingida tão duramente pelo expurgo como os militares. Um terço de todos os generais e almirantes foram suspensos do serviço e a força aérea perdeu 265 de seus cerca de 400 pilotos de caça. A repressão também foi dirigida ao turcos no estrangeiros. Erdogan chamou de volta ao menos 270 oficiais e adidos militares em bases da OTAN, os em Mons, Nápoles e Ramstein na Alemanha. O Supremo Comandante da OTAN, Curtis Scaparrotti adverte que as demissões “degradaram” as capacidades militares da Aliança.
Um perigo para a Aliança
Alguns dos oficiais da OTAN que foram demitidos falaram agora com o SPIEGEL, a primeira vez que foram a público com suas histórias. Para a entrevista, Ozcan e três colegas todos mudaram seus nomes para protegerem suas identidades; eles possuem família na Turquia e estão preocupados com o governo preparar uma vingança. Os homens fornecem uma análise das forças armadas turcas. Eles dizem que o golpe fracassado feriu a moral e imagem das tropas e ainda disseram que grupos diversos estão lutando por poder com alguns deles, se opondo abertamente ao Chefe de Estado-Maior do exército, Hulusi Akar. “Os militares então passando pela época mais difícil de sua história”, diz o ex Chefe de Estado Maior Geral, Ilker Basbug.
O Presidente Erdogan não parece se importar. Ele enviou seus soldados para a Síria e Iraque, ambas sendo operações complicadas. No meio da crise, a Turquia parece estar se virando para longe do Ocidente em direção do Oriente, particularmente na direção da Rússia. Desde a revolta de 15 de julho, a Turquia – que uma vez foi um pilar da OTAN com o segundo maior exército da coalizão – se transformou em um perigo para a Aliança.
Eyup Ozcan estava sentado junto com amigos em um restaurante turco em Bruxelas em 15 de julho de 2016 quando a televisão começou a mostrar imagens de tanques nas ruas de Ancara e Istambul. “Eu fiquei chocado. Pensei que isso não podia ser real”, diz ele.
Naquela noite, um grupo dentro dos militares turcos temporariamente tomou controle de partes do país. Os insurgentes ocuparam o Ponte do Bósforo em Istambul e também a emissora estatal TRT. Caças bombardearam o prédio do Parlamento em Ancara. Mas o governo conseguiu recuperar o controle na manhã seguinte.
Ozcan esperava que uma vida tranquila retornaria aos militares, mas pouco tempo depois ele recebeu ordens de deixar seu cargo no quartel-general da OTAN. O governo o acusa de apoiar o pregador islâmico Fethullah Gulen, o homem que Ancara suspeita de ter orquestrado o golpe, apesar de não haver provas ou sequer evidências neste sentido. Gulen é o inspirador do movimento Hizmet, que visa a paz universal e o diálogo entre os povos e religiões. O Hizmet possuía diversas escolas, faculdades, hospitais e órgãos de mídia na Turquia, que eram vistos como os de melhor qualidade no país, mas que agora foram todos confiscados pelo governo turco do Presidente Erdogan. Centenas de milhares de pessoas já foram detidas ou presas por supostas ligações com o Hizmet, muitas das quais ainda aguardam julgamento em prisões superlotadas. Entre as pessoas presas estão jornalistas, juízes, promotores, governadores, empresários, acadêmicos, etc.
Na Turquia, a maioria das pessoas já foi convencida, pelo governo e pela mídia pró-governo, de que os apoiadores do movimento islâmico de Gulen participou na insurgência. Mas observadores como Ozgur Unluhisarcikli, do escritório em Ancara do German Marshall Fund [Fundo Marshall Alemão], são críticos do fato que o governo está usando o crime como um pretexto para reprimir a oposição.
Ozcan nega ter quaisquer laços com Gulen. Ele diz que seu tio tem uma conta em um banco que faz parte da rede do movimento de Gulen, e que é possível que seja assim que ele ficou sob o radar das autoridades turcas. “Erdogan está conduzindo uma caça às bruxas”, diz ele.
O expurgo estremeceu os militares. “Todos estão com medo de serem denunciados”, diz um soldado raso de Ancara. Apoio entre seus homens diminuiu para Akar, chefe do exército, como resultado de imagens de soldados aprisionados que parecem ter sido abusados. Há duas semanas, um tribunal condenou os primeiros soldados de alta patente que participaram na tentativa de golpe e os sentenciou a longos períodos na prisão.
Uma “Missão Suicida”
O Estado-Maior agora está tendo dificuldades em reabastecer o massivo número de cargos deixados vazios pelas detenções. O governo está atualmente usando propagandas nos jornais em uma tentativa de atrair 25.000 novos recrutas. Muitos dos oficiais que estão agora nas cadeias controlavam partes cruciais do exército e levará gerações para as forças armadas se recuperarem desta perda de experiência e conhecimento, argumenta Gareth Jenkins, um perito em Turquia do Central Asia-Caucasus Institute [Instituto Ásia-Cáucaso Central]. A falta de pessoal na Força Aérea te tornou tão aguda que nove pilotos que estão atualmente fazendo incursões na Síria haviam sido colocados em detenção temporária durante o meio do ano passado por supostamente serem membros da tentativa de golpe. Eles na verdade não podem deixar o país e precisam reportar à polícia antes e depois de cada missão.
O tumulto dentro do exército representa uma ameaça à segurança das tropas. A Turquia adentrou na Síria em agosto para expulsar o Estado Islâmico (ISIS) e as milícias curdas das regiões fronteiriças e os soldados turcos já lutam por seis meses no país vizinho, com nenhum sinal de um fim para a operação. O ex embaixador turco nos Estados Unidos, Faruk Lagoglu, descreveu isso como uma “missão suicida”. No final de dezembro, 16 soldados morreram durante uma ataque contra o ISIS na cidade de al-Bab, a nordeste de Alepo. As perdas na região são “mais altas do que precisam ser” pois a força aérea não é mais capaz de fornecer apoio suficiente, diz um piloto de caça dispensado de sua posição pelo governo.
A autoimagem da Turquia levou um golpe como resultado da fraqueza dos militares. As forças armadas já por muito tempo haviam sido a fonte de grande orgulho no país com os generais, conhecidos como paxás, tendo determinado a direção política do país por décadas. Eles de veem como os guardiões do legado secular-nacionalista de Kemal Ataturk, o fundador da Turquia dos dias atuais. Mas Erdogan quebrou o poder militar desde que assumiu o cargo de primeiro-ministro em 2003. Juntamente com membros do movimento Gulen no aparato estatal, com quem ele ainda estava aliado na época, ele tinha centenas de oficiais kemalistas sentenciados em julgamentos feitos para dar um show. Apoiadores de Gulen tiraram vantagem dos cortes rasos para aumentarem de patente entre os militares. Mas nos anos seguintes, Gulen e Erdogan tiveram uma briga. Erdogan alegou no meio do ano passado que o pregador havia orquestrado a tentativa de golpe para derrubá-lo e ele desde então tem tido uma aproximação linha dura quanto aos supostos apoiadores de Gulen.
O segundo grande expurgo entre os militares turcos dentro de apenas alguns anos criou um vácuo – um que grupos dissidentes estão agora tentando preencher. O Partido Patriota ultranacionalista do país (Vatan Partisi) e grupo Sadat islamista radical estão expandindo suas influências entre os militares. O chefe do Partido Patriota, Dogu Perincek, está advogando para que a Turquia se afaste da Europa e está trabalhando juntamente a Alexander Dugin, consultor político russo. O Sadat, enquanto isso, surgiu de um firma de segurança privada cujo fundador, Adnan Tanriverdi, um ex general que foi forçado a uma aposentadoria precoce durante os anos 90 por causa de suas atividades islamistas, agora, logo em seguida da tentativa de golpe, tornou-se um conselheiro de Erdogan.
Olhando para o Oriente
Ambos os grupos poderiam desempenhar um papel em moldar a direção das forças armadas turcas. Metin Gurcan, analista de segurança turco, acredita que os militares irão buscar cada vez mais uma pauta eurasiana e religiosa. Ex oficiais turcos da OTAN alertam que o presidente russo Vladimir Putin poderia explorar a luta de poder entre os militares turcos para aumentar a influência da Rússia sobre a Turquia, que é parceira da OTAN.
Em novembro de 2015, Moscou e Ancara estiveram à beira de um conflito militar depois que os turcos abateram um caça russo perto da fronteira entre a Síria e a Turquia. Mas depois que Erdogan emitiu um pedido de desculpas, os dois lados tem demonstrado cada vez mais unidade. Akar, o chefe do exército, viajou em novembro para Moscou para ter conversas com seu colega russo e no meio de dezembro, a Rússia e a Turquia negociaram um acordo sobre a evacuação de leste de Alepo.
O assassinato de Andrey Karlov, o embaixador da Rússia na Turquia, por um policial turco em 19 de dezembro em Ancara na verdade parece ter aproximado os dois países ainda mais. Apenas um dia após os ataques, os ministros das relações exteriores da Rússia, Irã e Turquia se encontraram para terem conversas sobre a Síria em Moscou. Um senador russo sugeriu que a OTAN ordenou o assassinato de Karlov para disparar um torpedo nas relações entre a Rússia e a Turquia. A mídia turca alinhada com o governo rapidamente adotou essa teoria da conspiração. O assassinato de Karlov, disse um comentarista de televisão, mais uma vez colocou um ponto de interrogação sobre a parceria militar com o Ocidente.
Peter Müller e Maximilian Popp
Este artigo apareceu originalmente na edição alemã 3/2017 (14 de janeiro de 2017) da revista DER SPIEGEL.
Fonte: www.spiegel.de