A guerra dos mahdi na política turca
Os problemas vividos atualmente no mundo islâmico se sustentam por conta de discursos religiosos e inclusão da religião na política. Até hoje muitos declararam ser califa para reunir o mundo islâmico, inclusive Abdulkadir El Bagdadi, líder do Estado Islâmico (ISIS ou Daesh). Existe uma outra doutrina na fé islâmica que tem um peso parecido com a doutrina do califado. Uma das polêmicas mais recentes na Turquia é sobre quem será nomeado como Mahdi. Mahdi no Islam, é o título do sistema representado pelos que vêm ao mundo para orientar as pessoas ao bem, desde a morte do último profeta do Islã. A missão principal do Mahdi na véspera da ressurreição é construir o caminho para a segunda vinda de Jesus e lutar contra o Dejjal (anti-cristo).
Na Turquia, o governo acusa o inspirador do Movimento Hizmet, Fethullah Gulen, um erudito e clérigo islâmico turco radicado nos EUA, com provas rasas, de ser o autor da tentativa de golpe. Mas Gulen nega veementemente qualquer envolvimento. Para alimentar a teoria do governo, os apoiadores de Erdogan, presidente da Turquia, dizem que Gulen se considera o Mahdi e comanda seus simpatizantes para controlar o mundo.
Nem Gulen ou algum de seus simpatizantes escreveram ou falaram algo que descreva ele como Mahdi. Para seus seguidores, Gulen é um clérigo e erudito respeitado que interpreta o Alcorão sob a luz dos fatos contemporâneos. As palestras, sermões e discursos de Gulen são registrados há mais de 40 anos e ele tem mais de 80 livros publicados. Com 77 anos, Gulen nunca sequer uma vez falou de algo que possa ser entendido assim. Há mais de meio século, o Hizmet se espalha pelo mundo e nunca surgiu alguma prova ou evidência que apoiasse essas alegações. Além disso, após o golpe de 1997, Gulen foi julgado por 8 anos acusado de querer trazer a xaria de volta. Os argumentos foram levados para audiências dos tribunais da época, mas nenhuma prova concreta foi levantada e comprovada, e assim ele acabou sendo absolvido.
Por outro lado, os simpatizantes do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento), que governa a Turquia há 14 anos, saúdam abertamente Erdogan com títulos como salvador, líder do mundo islâmico, califa e também Mahdi. Aqui estão algumas declarações dos nomes próximos ao Erdogan que provam esses fatos. Erdogan e outras autoridades não condenaram, recusaram ou mesmo questionaram estas declarações.
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Erdogan é um grande líder, tanto que em si acumulou todos os atributos de Deus. (Fevzi Arslan, deputado do AKP)
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Erdogan é como um segundo profeta para nós. (Ismail Sezer, presidente do AKP da província Aydin)
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Deixar Erdogan triste significa deixar Deus triste. Não podemos perder a esperança em Deus e assim também não podemos perder nossa esperança em Erdogan. (Fatma Durmus, poeta)
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Na minha opinião, tocar em nosso primeiro-ministro (Erdogan) é uma adoração. (Huseyin Sahin, deputado do AKP)
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No mundo muçulmano existe um único líder que é chamado Erdogan, o nosso califa. (Enis Timucin, presidente do comitê organizador das manifestações pró-Erdogan)
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Se nosso presidente (Erdogan) desejar eu gostaria de ser sua concubina em seu palácio. (Ikbal Pinar, apresentadora de TV)
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Nós obedecemos absolutamente ao nosso grande líder, somos obedientes e fieis, agimos com obediência e fidelidade total. (Mehmet Metiner, deputado do AKP)
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Quem não votar em Erdogan, irá para o inferno. (Kadir Misiroglu, historiador)
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Erdogan é o presidente eterno do AKP. (Suleyman Soylu, vice-presidente do AKP)
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Até Erdogan não declarar nas mesquitas, sua liderança como imã dos muçulmanos, eu acho que a oração de sexta-feira não é obrigatória. (Fatih Tezcan, jornalista)
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Erdogan é o meu antepassado, o líder eterno a ser lembrado para sempre. (Yigit Bulut, jornalista)
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Não pode colocar a televisão no chão quando estiver transmitindo o discurso de Erdogan. (Prefeito do município de Cayeli, Riza Cakir)
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Recep Tayyip Erdogan é o último soldado de uma missão, que vem desde o Profeta Abraão até os dias de hoje. (Samil Tayyar, deputado do AKP)
Além dessas, existem várias outras declarações com esse mesmo sentido. Talvez, essa apresentação feita por um jornalista pró-Erdogan resume perfeitamente o olhar deles:
De agora em diante, o califado passou a ser representado pelo parlamento turco. Nesse sentido, o governo está cumprindo seus deveres. Se Erdogan transformar o sistema parlamentar em sistema presidencialista, ele provavelmente atribuirá conselheiros de todos os países, de todas as regiões, que são dependentes do califado. Serão abertas as representativas da União Islâmica no seu palácio de onde tiver uma comunidade islâmica em qualquer lugar do mundo, especificamente as de nações (que integravam) o império otomano. Então ele terá representantes de cada lugar no seu palácio. Pois, a lei sobrecarrega o presidente com a missão de salvar os direitos do povo. (Abdurrahman Dilipak, jornalista)
A força do Mahdi é inquestionável. Por isso os políticos do mundo muçulmano querem o Mahdi do seu lado. Uma vez que alguém fizer o povo acreditar na sua representatividade como Mahdi, ele pode acumular todo o poder. Os grupos radicais vem aproveitando dessa força há décadas. Infelizmente, agora o povo turco está sujeito a ser envenenado com esta onda de radicalismo, graças aos discursos de Erdogan que estimulam eles a reagir, inclusive violentamente.
Durante as manifestações do Parque Gezi em junho de 2013, Erdogan havia ameaçado os manifestantes dizendo “mal consigo segurar 50% da população em suas casas”. Essa multidão que ele havia segurado com dificuldade em suas casas, agora estão nas ruas e nas redes sócias como guardiões da “democracia”, a qual eles não praticam. Entre as pessoas que foram convidados para saírem às ruas, existem os que compartilham a mentalidade do Estado Islâmico. Eles veem os adversários como traidores e inimigos, e consideram lícito a tomada de todos os bens, suas mulheres e até a vida dos opositores.
Diante das autoridades que promovem essa mentalidade, o que esperar da população? Logo em seguida da chamada do governo, um dos dirigentes de um time de futebol da Turquia postou esta mensagem na sua conta no Twitter: “As mulheres deles são permitidas para nós” que significa que podem ser usadas como escravas sexuais. Isto dispensa qualquer comentário sobre o assunto.
Por Kamil Ergin
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