Quando o revide é mais forte que o golpe
TOTALITARISMO O governo turco foi ameaçado por um golpe de Estado freado pela população nas ruas. Mas a repressão oficial após a tentativa segue ameaçando a democracia – um bem que a sociedade turca parece querer defender a todo custo
Uma fração de menos de 2% do Exército tentou tomar o poder à força na Turquia no último dia 15 de julho, espalhando pânico e revolta em Ancara e Istambul. Apesar do toque de recolher imposto pelos golpistas, opositores e governistas ocuparam as ruas em manifestações contrárias ao ato antidemocrático. A resposta popular impediu o golpe, mas o revide do governo foi tão forte que atingiu em cheio a democracia, ainda em risco.
O governo de Recep Tayyip Erdogan, conhecido por seu autoritarismo, garantiu a sua permanência no poder, mas pesou a mão ao afastar do Estado figuras divergentes. Enquanto o confronto entre militares e civis deixou 270 mortos durante a tentativa de golpe, a reação governista afetou a vida de 60 mil pessoas com demissões e prisões. Muitos foram torturados, de acordo com a ONG Anistia Internacional.
“Normalmente todo contragolpe se caracteriza por ser tão ou mais violento do que o golpe em si. Parece que o mesmo aconteceu na Turquia”, opina Sérgio Luiz Cruz Aguilar, professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “A quantidade absurda de instituições fechadas nas últimas semanas indica um prejuízo muito grande para a sociedade turca.” Estima-se que mais de 2 mil instituições tenham sido dissolvidas, entre elas veículos de comunicação e instituições de ensino.
As ações colocam em risco a segurança, a educação e a liberdade de imprensa, além de afastar o país da adesão à União Europeia. A Turquia, importante ponte entre o Oriente Médio e a Europa, parece afastar-se do avanço obtido nos últimos anos rumo à democracia. Especialistas consultados por Cidade Nova preveem um futuro obscuro para a nação, mas também confiam na força da luta do povo turco rumo à liberdade.
Um golpe que caiu do céu
Após o golpe, as autoridades turcas demitiram, prenderam ou colocaram sob investigação militares, policiais, juízes, professores, funcionários públicos e jornalistas. O objetivo é livrar as instituições de membros do movimento político-religioso Hizmet, chamado por Erdogan de “Estado paralelo”. O grupo, que não é representado por um partido, mas atua em vários setores da sociedade civil, é encabeçado pelo clérigo Fethullah Gulen, exilado nos Estados Unidos e acusado de tramar o golpe. O religioso repudia a acusação.
Integrante do Hizmet e editor do portal Voz da Turquia, o jornalista Kamil Ergin nega a participação do movimento no golpe e critica a dificuldade do governo Erdogan em conviver com opiniões políticas divergentes. “Nós somos contra qualquer tipo de golpe. Estamos no século 21, todo mundo sabe que o melhor sistema é a democracia”, declara.
“O que vemos é um regime ilegal que tentou ser libertado por outro regime ilegal. Não sei dizer qual é pior. Certamente não era isso que a Turquia sonhava em 80 anos de República”, explica Ergin. Segundo o jornalista, o movimento Hizmet prega a tolerância e a integração entre as culturas e religiões.
Os críticos de Erdogan supõem que o golpe pode ter sido armado pelo próprio governo para justificar a repressão indiscriminada contra a dissidência. “Não resta a menor dúvida. Esse pseudogolpe caiu do céu para Erdogan passar vassourada em setores que já queria ter controlado há mais tempo e não conseguia pelo espaço de liberdade que havia”, observa Estevão de Rezende Martins, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Aguilar também vê o golpe com desconfiança. “Não houve prisão das autoridades nem o total controle das instituições-chave, incluindo a infraestrutura estatal. Historicamente isso é ponto pacífico em qualquer tentativa de golpe. Mas o presidente não só pôde retornar à capital como circulou livremente conclamando a população a reagir”, diz. O professor ainda estranha que o serviço de inteligência do país, tão eficaz ao listar os inimigos do governo, não tenha levantado a possibilidade de golpe a tempo.
Já André Barrinha, professor de Relações Internacionais da Universidade Cantebury Christ Church, no Reino Unido, considera improvável a teoria conspiratória. Para o especialista, o golpe serviu aos seguidores do clérigo Gulen como tentativa de reagir à limpeza planejada pelo partido de Erdogan – Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) – meses antes, mas que não deu certo porque não contavam com apoio suficiente dentro do Exército.
Em resposta à rebelião, Erdogan declarou estado de emergência na Turquia pela primeira vez em 15 anos. O instrumento permite ao presidente assinar leis sem aprovação prévia do Parlamento e amplia os atuais quatro dias de prisão preventiva legal para até 30 dias.
Autoritarismo
O golpe fracassou, mas levantou dúvidas sobre a legitimidade do polêmico personagem no poder. Erdogan comanda a Turquia há 13 anos e foi originalmente identificado como um líder muçulmano moderado, mas, nos últimos anos, tem governado o país com mão de ferro. Ele é acusado de barrar investigações de escândalos de corrupção no seu governo, demitir policiais e juízes, além de censurar a imprensa e a livre expressão na internet.
No ano passado foi aprovada uma lei que considera crime “insultar o presidente”, útil para prender opositores. Graças à maioria absoluta de que dispõe no Parlamento, Erdogan agora tenta alterar a Constituição, de modo a concentrar os poderes do Estado no Executivo, ou seja, no cargo de presidente ocupado por ele.
“Erdogan caminha para criar um sistema totalmente dependente dele. Podemos considerá-lo como a volta do sultanato”, afirma Ergin. Segundo ele, o índice de aprovação do presidente é baixo e Erdogan já teria perdido sua credibilidade após tanto abuso de poder. “Ter 50% dos votos não dá o direito de eliminar os outros 50%. A Turquia merece um regime democrático que deixe espaço para oposição”, defende.
O governista AKP é especialista em vencer eleições, mas parece estar perdendo força. Eleito à presidência por três vezes consecutivas, Erdogan venceu em 2015 com 52% dos votos. Segundo pesquisa eleitoral, o AKP continua tendo a aprovação de pouco mais da metade da população em uma sociedade cada vez mais dividida e amedrontada.
Estratégia de poder
Apesar de todas as críticas, há razões importantes para a manutenção de Erdogan no poder por mais de uma década. Entre elas, a estabilidade econômica, com controle da inflação e crescimento anual médio de 4,5% no período.
A partir de 2014 o cenário foi positivo, mas começou a mudar. A taxa de crescimento caiu e o desemprego aumentou, situação que pode se agravar com o golpe. “Notícias recentes dizem que o golpe representou um impacto de US$ 100 milhões na economia turca”, sugere Barrinha. “Além disso, o clima de instabilidade pode deixar investidores internacionais com receio de investir no país”, alerta.
Outra razão que garante a permanência de Erdogan é o medo da população das ameaças externas, aponta Aguilar. “Estado Islâmico e movimento curdo têm realizado ações na Turquia, especialmente atentados, que fragilizam a segurança do Estado e da população”, observa. “Talvez esses fatos pesem e façam com que a maior parte da população ainda apoie o grupo de Erdogan, em troca de maior segurança.”
A concentração da mídia pelo lí der dá pouca visibilidade às críticas sobre seu governo, que se fortalece. “Erdogan controlava 90% da mídia. Após o golpe, detém poder sobre 100% os meios de comunicação”, contabiliza o jornalista de oposição, Ergin. “As pessoas na Turquia não têm a chance de não acreditar nele.”
Tão perto, tão distante
O Ocidente vê a Turquia como parte da solução no Oriente Médio, já que sua localização geográfica permite ao país ser uma ponte entre a turbulenta região e a Europa, controlando inclusive o fluxo de migrantes de uma área a outra. Com 750 mil soldados, o exército turco é a segunda maior força da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), aumentando sua relevância estratégica.
As atitudes autoritárias de Erdogan e a tentativa de golpe preocupam a Europa e os Estados Unidos, uma vez que a instabilidade política no país coloca em risco seus interesses. Uma das bandeiras do presidente é implantar a pena de morte, abolida em 2004.
A União Europeia (UE) já avisou que a prática enterraria de vez o processo de adesão ao bloco. “Já era difícil que a Turquia tivesse chance de ingressar, pois está muito longe de cumprir as exigências da UE. Recentemente, houve marcha ré de tal forma rápida, que o país volta ao fim da fila”, opina Martins.
Histórico autoritário
Antes da chegada do AKP ao poder, a Turquia enfrentou quatro golpes militares entre as décadas de 1960 e 1990. Nessas ocasiões as Forças Armadas exerceram a chamada “defesa do secularismo”, ou seja, do estado laico contra a influência da religião no governo.
“A tentativa de rompimento constitucional tem relação especialmente com a tentativa declarada de Erdogan de implantar um Estado Islã mico num país que, desde a reforma implementada por Mustafa Kemal Atatürk no início do século 20, estabeleceu um Estado secular”, explica Aguilar. “Desde então, as forças armadas têm se portado como garantidoras desse tipo de Estado e de sociedade. As tentativas de retornar oficialmente práticas islâmicas foram impedidas por golpes militares.”
A Turquia enfrenta cada vez mais turbulência, e muitos creem que a tentativa de derrubar o presidente Erdogan pode não ser a última. Por outro lado, depois de tantos golpes e tendo em vista a forte reação popular ao episódio recente, a conclusão é de que a sociedade turca já não tolera esse tipo de ameaça democrática e pode surpreender ao lutar com unhas e dentes por uma sociedade onde a liberdade impere.
Fonte: Revista Cidade Nova, Exemplar 605, Ano LVIII, Nº 9, setembro de 2016, www.cidadenova.org.br