Jogo de cena: visita de Joe Biden à Turquia
Visita de Joe Biden à Turquia: Ao ameaçar promover realinhamento da Turquia com a Rússia, Erdogan age como cão que ladra, mas não morde.
Construído por ordem do presidente Recep Tayyip Erdogan, oficialmente ao custo de US$ 615 milhões, o palácio presidencial de Ancara é uma fortaleza moderna de 1.150 cômodos, em que se destacam as colunas de pedra e os janelões de vidro plano. Inaugurado em 2014 e ocupado desde 2015 por Erdogan, o edifício é visto por seus simpatizantes como um emblema do vigor e determinação da Turquia. Para seus adversários, simboliza os instintos autocráticos e a sede de poder do presidente.
Durante a tentativa de golpe de 15 de julho, aviões de caça comandados por pilotos amotinados lançaram bombas nas proximidades do complexo. Na quarta-feira, o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, esteve no local para se desculpar com Erdogan pelo fato de os americanos não terem demonstrado mais solidariedade com a Turquia nos dias que se seguiram ao golpe.
A visita é feita depois de uma reconciliação facilitada pelas desculpas pedidas por Erdogan – “perdão”, segundo Moscou – pela destruição em novembro de um avião de combate russo perto da fronteira com a Síria por caças turcos. O incidente levou a uma dura troca de acusações entre os dois países.
Biden se esforçou ao máximo para emendar as coisas. Comparou a tentativa de golpe com os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA, disse lamentar não ter visitado antes e prestou homenagem às vítimas do dia 15. Erdogan não se mostrou impressionado. Com cara de poucos amigos, o líder turco reclamou que Fethullah Gulen, o clérigo muçulmano que vive nos EUA e é ausado pelo governo turco de ter sido o mentor do golpe, continua solto. “Pelo tratado de extradição que a Turquia tem com os EUA, um indivíduo como esse deveria ter sido no mínimo detido”, disse.
A visita de Biden faz parte do esforço americano para tentar reparar uma relação bastante abalada. As autoridades turcas não se sentem apenas pouco prestigiadas: muitas acreditam mesmo que os órgãos de inteligência dos EUA tinham conhecimento prévio do golpe. A imprensa pró-governo acusa o Exército americano e a CIA de terem coordenado a ação dos golpistas. Pesquisas mostram que a grande maioria dos turcos acredita que os EUA tiveram alguma participação no episódio.
A relutância dos americanos em prender Gulen explica, em grande medida, o porquê dessa crença. A seita de Gulen, conhecida como cemaat, administra uma rede global de escolas, entidades filantrópicas e empresas, além de ter colocado seguidores seus em todos os escalões da burocracia turca. O movimento era aliado de Erdogan e de seu Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) até os dois grupos se desentenderem, em 2013. Entre os analistas ocidentais, há os que pensam que o golpe foi uma operação da cemaat e os que são da opinião de que outros grupos no interior do Exército também tiveram algum papel, mas a maioria dos turcos põe a culpa nos gulenistas.
Há algumas semanas, as autoridades dos EUA esclarecem à sociedade e ao governo turco que o pedido de extradição de Gulen está, como outro qualquer, a cargo da Justiça americana. “Em nosso país, a lei é aplicada sem exceções. É o que chamamos de separação de poderes”, disse Biden a um repórter. O efeito desse tipo de argumento é quase nulo. A maioria dos turcos “tem uma visão de mundo pautada por teorias conspiratórias. Acham que esse negócio de separação de poderes é conversa fiada”, diz James Jeffrey, que já foi embaixador dos EUA em Ancara.
Linha dura. Uma segunda fonte de atrito são as críticas, feitas por americanos e europeus, à onda de repressão que se seguiu ao golpe. Nos últimos anos, já era grande a preocupação dos governos ocidentais e das organizações de direitos humanos com o autoritarismo crescente de Erdogan. Quando milhares de pessoas suspeitas de envolvimento com os gulenistas e outros oponentes começaram a ser presas, aumentou a desconfiança de que o presidente turco estaria usando a tentativa de golpe como subterfúgio para se perpetuar no poder. Dois dias após o golpe, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, e Federica Mogherini, chefe da diplomacia da União Europeia (UE), advertiram a Turquia de que era preciso respeitar os direitos humanos.
Para os turcos, que depois de terem defendido um governo civil de uma quartelada, viviam um momento de júbilo nacional, isso foi uma grande ofensa. Alguns diplomatas americanos agora acham que se equivocaram no tom da mensagem. “Que reação vocês teriam se o presidente de outro país viesse a Nova York cinco semanas depois do 11 de Setembro e nos passasse um sermão sobre o Patriot Act?”, indagou um deles.
A última queixa é que, depois do golpe, os líderes ocidentais não fizeram visitas de solidariedade a Ancara. Os europeus, ainda ressentidos com as posições duras adotadas por Erdogan nas negociações que precederam o acordo, firmado em março, para lidar com o fluxo de refugiados sírios, não estavam dispostos a lhe dar nenhuma colher de chá. Com o número de pessoas atingidas pelos expurgos promovidos pelo governo turco chegando a 80 mil, uma visita poderia ser vista como sinal de aprovação.
A preocupação dos europeus não é infundada. Os expurgos vêm sendo feitos “sem o menor respeito pelo devido processo legal, violando direitos básicos das pessoas”, afirma o parlamentar da oposição e advogado de direitos humanos Sezgin Tanrikulu. Decreto promulgado pelo governo após o golpe autoriza a detenção de suspeitos por até 30 dias, sem que as autoridades sejam obrigadas a esclarecer do que a pessoa é acusada. O acesso a advogados é limitado. O governo não busca provas do envolvimento dos suspeitos com o golpe, diz Tanrikulu, mas de ligações com o movimento gulenista.
Em resposta às críticas das potências ocidentais, a Turquia ameaça virar as costas para o Ocidente. Vladimir Putin foi um dos primeiros líderes estrangeiros a manifestar apoio a Erdogan durante a tentativa de golpe, e o primeiro a ser visitado pelo presidente turco nas semanas subsequentes. O governo turco, que antes defendia a destituição do presidente da Síria, Bashar Assad, apoiado por Irã e Rússia, recentemente declarou que concorda com sua permanência temporária.
Em termos estratégicos, no entanto, a Rússia não constitui alternativa à aliança que a Turquia tem com o Ocidente. Os dois países são inimigos históricos e travam uma disputa por influência no Cáucaso, no Oriente Médio e no Mar Negro. Para os turcos, vale muito mais a pena fazer parte da Otan. De fato, enquanto Biden estava em Ancara, forças turcas penetravam o território sírio, pela primeira vez com cobertura aérea americana, para atacar o Estado Islâmico. Os turcos estão exasperados com a reação do Ocidente ao golpe, e a maioria deles suspeita que os americanos apoiam a cemaat. Mas não será agora que romperão seus laços com os EUA ou com a Europa. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER
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