Renúncia de Davutoglu e o abismo da Turquia
Poucos ficaram surpreendidos quando Ahmet Davutoglu anunciou sua renúncia ao cargo de primeiro-ministro da Turquia depois de uma reunião com o Presidente Recep Tayyip Erdogan.
Existe apenas uma leitura da separação dos dois: Erdogan, buscando um sistema presidencial com poder total, não tolerará obstáculo político algum em seu caminho, não importando quão arriscado seja, ou quanto custe.
Não há duvida de que Erdogan veio a enxergar Davutoglu como um obstáculo. Depois de Erdogan ter sido eleito presidente em 2014, ele cuidadosamente escolheu Davutoglu, que parecia se encaixar no papel de, na prática, um primeiro-ministro provisório para servir a uma política que abriria o caminho para uma mudança de um sistema parlamentarista para um em que os poderes executivos fossem transferidos para o palácio presidencial.
Conforme o tempo passou, contudo, Davutoglu mudou de rumo, moldando discretamente um perfil próprio. Aparentemente nos últimos meses os dois homens começaram a divergir quanto a importantes questões: a corrupção, as políticas da UE e como proceder com a questão curda. Davutoglu, na visão de um Erdogan hipersensível, se tornou uma desvantagem e enfrentou o inevitável.
Isso vai bem além de uma simples disputa política. Por detrás da manobra espreita um embate entre as aparentemente incontroláveis ambições pessoais e o que muitos observadores consideram como um caminho descontrolado que a Turquia delineou por causa deles. Davutoglu ter sido tirado do caminho significa que a crise sistemática do país vai se aprofundar.
Para limpar seu caminho, Erdogan esticou a constituição até os seus limites, repetidamente rompendo a “imparcialidade da presidência”. Ele rejeitou negociações de paz com o partido separatista dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), mudou seu caminho político para cementar uma aliança com os militares e declarou guerra contra a mídia e contra todos que discordarem de suas políticas. Sua aberta interferência com os negócios do governista Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) e forçar Davutoglu a renunciar, foram a última gota.
Ao ocasionar um congresso extraordinário para o AKP, Erdogan deixou claro que quer continuar como o líder incontestado que não pestanejará perante oposição alguma. Ele reafirma sua vontade ao não apenas controlar o partido e o governo, mas também o parlamento, as instituições do estado e enormes extensões da burocracia. A Turquia está muito perto de uma histórica tomada de poder, que alguns observadores preocupados chamam de golpe civil.
A questão é: o que vem a seguir, se isso acontecer? Será um longo período de agitação social e instabilidade política? A Turquia está enfrentando uma mudança para um regime que será definido como uma autocracia nacionalista, teocrática? E quanto aos seus problemas não resolvidos, como os Curdos e a minoria Alevita e as liberdades básicas?
É difícil de prever mas isto já está claro: se deixada sem resolver, nenhuma grande questão cessará de assombrar a Turquia e quanto mais fundo a crise afundar, mais visíveis essas questões se tornarão.
O paradoxo turco é que o estado de crise cria oportunidades para Erdogan. Conforme o conflito curdo aumentou sua popularidade entre os conservadores, segmentos nacionalistas e secular-republicanos da sociedade, outro debate recente parece ter lhe dado margem para pairar acima das emoções religiosas. Dias antes do caso do Davutoglu houve um debate acerca de um tópico explosivo: se o princípio secularista da constituição da república possui algum futuro que seja.
Foi o Presidente do Parlamento Ismail Kahraman, também do AKP, que acendeu o pavio. Em uma declaração ele disse: “Não deve haver definição alguma de secularismo na nova constituição… Nossa constituição não deve evitar a dimensão religiosa. Somos uma nação islâmica e devemos fazer uma constituição piedosa.”
Essas palavras caíram como uma bomba. A oposição clamou pela resignação do orador; as pessoas tomaram as ruas, tendo embates com a polícia.
Houve, parece, razão para essa preocupação. Histórias internas deixaram claro que o AKP aspirou por uma nova constituição, não apenas impondo um sistema presidencial com poder total, mas uma que colocaria uma forte ênfase no Islã.
Colocada nesse contexto maior de turbulência nacional, a renúncia do Davutoglu compreensivelmente eleva as preocupações a um nível sem precedentes.
Yavuz Baydar
Tradução de: Renato José Lima Trevisan