Turquia intensifica ofensiva contra imprensa independente
O governo do presidente Erdogan aumenta o cerco a jornais e jornalistas não alinhados com o partido AKP
As dezenas de grades de segurança, os sete carros-forte estilo “caveirão” estacionados na porta e os policiais fortemente armados que guardam o alto prédio em Yenisbona, bairro na parte ocidental de Istambul, enganam quem passa na rua: não se trata de um complexo bancário, tampouco de um prédio do governo com segurança extra em tempos de atentados, como o visto no último domingo, dia 13, na capital Ancara. O edifício em questão pertence ao grupo de mídia Feza Gazatecilik, casa dos jornais Zaman e Today´s Zaman e da agência de notícias Cihan.
O cenário é mais ou menos o mesmo desde sexta-feira, dia 4, quando forças de segurança tomaram a redação do jornal de maior circulação da Turquia, o Zaman. A invasão à redação ocorreu depois de uma sentença judicial emitida por uma corte em Istambul que determinou que interventores assumissem a direção das publicações, acusadas de disseminar “propaganda terrorista”. O primeiro-ministro Ahmet Davutoglu se apressou em declarar que tratava-se de uma decisão “legal, não política”.
A súbita tomada do Zaman parece se tratar de mais um capítulo da investida contra grupos opositores, jornalistas e críticos capitaneada por Recep Tayyip Erdogan, que busca consolidar e expandir seus poderes como presidente, cargo que assumiu em 2014, depois de ocupar por mais de 11 anos o posto de primeiro-ministro do país. Desde que o governista Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP,em sua sigla em turco) assegurou a maioria dos assentos no parlamento na segunda rodada de eleições em novembro do ano passado, o presidente Erdogan intensificou seus ataques contra quem considera adversário de seu projeto político e ao que entende como ameaças à “segurança nacional”.
Dentre as vítimas estão jornalistas independentes ou ligados a veículos e grupos não-alinhados com o governo. Em 2015, 14 profissionais de imprensa estavam presos na Turquia, de acordo com o Comitê de Proteção a Jornalistas (CPJ) – hoje, a estimativa de organizações independentes como a Associação de Jornalistas da Turquia (TGC, em sua sigla em turco) é de que 32 jornalistas estejam detidos no país. Segundo relatório da Anistia Internacional do ano passado, o governo agora está empenhado em um esforço de mudança e indicação de juízes e magistrados em diferentes cortes e fóruns, motivado “por razões políticas”.
Em um dos casos mais divulgados, Can Dündar e Erdem Gül, do jornal Cumhuriyet, passaram 92 dias presos, sem julgamento, por publicarem reportagem sobre um suposto esquema de tráfico de armas para islamistas na Síria por parte do governo turco, no ano passado. Dündar e Gül, soltos em fevereiro, são acusados de espionagem e divulgação de segredos de Estado e agora enfrentam a possibilidade de ser condenados à prisão perpétua.
Antes do Zaman, forças de segurança tomaram de forma semelhante os canais de mídia e as publicações do grupo Koza Ipek, do empresário Akin Ipek, em outubro de 2015. Assim como o grupo Feza, dono do Zaman, Ipek é reconhecido por ser alinhado ao grupo do clérigo turco , ex-aliado e atual desafeto de Erdogan. Embora Güllen viva nos Estados Unidos desde 1999, Erdogan acusa os seguidores do movimento social e religioso de Güllen de orquestrarem uma tentativa de derrubada do governo do AKP, por meio de investigações de corrupção contra o partido.
Invasão
Na sexta-feira, dia 4, os corredores do prédio do Feza foram tomados pela nuvem de gás lacrimogêneo, direcionada a quem protestava contra a tomada das publicações do lado de fora. Canhões de água também foram utilizados na tentativa de dispersar o grupo de 500 pessoas que permanecia no local. Os repórteres, de dentro das redações, filmaram e realizavam transmissões ao vivo de seus celulares – uma dúzia de vídeos na internet mostra a entrada de dezenas policiais, fortemente armados, dentro do edifício, abrindo caminho à força entre funcionários. Desde então, o prédio é mantido sobre forte guarda armada.
“Depois de meses de pressão, já esperávamos que algo do gênero poderia acontecer”, diz Sevgi Akarçesme, ex-editora-chefe do “Today’s Zaman”, a versão em inglês do diário turco. “Nós sabíamos que era uma questão de tempo”, completa. Além de perder o emprego, Sevgi é ré em um dos 1845 processos que tramitam na justiça turca por “ofensa ao presidente”. Seu crime foi ter um tuíte seu respondido com uma ofensa à Erdogan. Para ela, a ofensiva contra o movimento ligado a Güllen é motivada por “vingança pessoal”. “Isso tem muito a ver com as investigações de corrupção, iniciadas em 2013, absolutamente legítimas e baseadas em provas contundentes”, afirma – Erdogan afirma que a apuração foi orquestrada por pessoas do movimento e os acusa de formar um “estado paralelo”.
Pouco depois da invasão do Zaman, Sevgi partiu para Bruxelas, onde se encontra no momento, e por hora, não pretende retornar à Turquia. “Temo pela minha integridade física. Vim com uma mala apenas, arrumada às pressas, mas não tenho como voltar”, afirma. “Nem durante os períodos de regime militar algo parecido aconteceu”, lamenta a jornalista.
Mustafa Yilmaz, que ainda ocupa o cargo de editor de Internacional da publicação, afirma que artigos e reportagens são cortados sem explicação e textos novos aparecem, sem fonte definida. “Nós estamos nos parecendo cada vez mais com o Egito”, afirma, em referência às práticas autoritárias do presidente Abdel Fatah al-Sisi. As mudanças na linha editorial do veículo não passaram despercebidas – logo na primeira edição sob tutela da nova direção, na primeira página, ilustrada com foto de um sorridente Erdogan, sobravam elogios à obra em construção de uma terceira ponte sobre o Estreito de Bósforo. Não existem número divulgados, mas jornalistas e ex-jornalistas do Zaman, até então o maior jornal da Turquia, estimam que a circulação tenha caído de 650 mil exemplares diários para 3 mil.
As ações contundentes contra veículos não tem conseguido, no entanto, silenciar todos os profissionais afetados. Alvo de uma invasão semelhante em outubro do ano passado, Mehmet Yilmaz, hoje comanda a redação do Özgur Düsunce – “Livre Opinião”, em turco. Formado em Ciência Política, Yilmaz coincidentemente foi aluno, na universidade, do atual primeiro-ministro Davutoglu. “Ele gostou da minha tese final”, lembra. Hoje, já com 20 anos de carreira, Yilmaz era editor-chefe do jornal Bügun, do grupo Koza Ipek, tomado sob acusação de “financiamento a grupos terroristas” – e assim como no Zaman, um grupo de interventores foi apontado para administrar o jornal.
O jornalista então pediu demissão e, no mesmo dia, saiu em busca de um lugar que pudesse abrigar uma nova redação. Encontrou um salão de 90m2, em um centro comercial de Istambul e lá, com dinheiro da própria aposentadoria, montou o Özgur Düsunce, com dois computadores e 8 pessoas – 120 edições depois, 55 profissionais trabalham no salão para manter o jornal rodando. “Podíamos ter mudado de profissão, mas escolhemos lutar. Perdemos número de páginas e qualidade de papel, mas o conteúdo se mantém igual”, afirma. Mesmo com o histórico recente e a atual situação do Zaman, Yilmaz diz não temer ter o novo veículo fechado novamente. “Se governo fizer de novo, pego meu paletó, vou para outro lugar e abro outro jornal”, diz.
Estado da Liberdade
Entre 2010 para 2015, a Turquia viu seus índices de liberdade de imprensa se deteriorarem – no ranking da organização Freedom House, que mede o estado de liberdade no mundo, a qualificação do país no quesito “imprensa livre” despencou de “parcialmente livre” para “não-livre”. A entidade diz que as condições no país pioraram depois da introdução de leis que “aumentaram o poder de censura e controle de sites e veículos de notícia”.
Desde que assumiu o cargo de presidente em 2014, Erdogan passou a recorrer a antes pouco usada lei que proíbe insultos ao chefe de Estado – no começo de março, eram mais de 1.845 casos abertos a partir da regra em um ano e meio de mandato, a de acordo com a agência Associated Press – os alvos incluem jornalistas, celebridades e até estudantes escolares adolescentes.
A Repórteres sem Fronteiras (RWB, em sua sigla em inglês) colocou a Turquia em 2015 na posição 149 de um ranking de 180 países sobre o tema, atrás de países como o Myanmar.
TERESA PEROSA| DE ISTAMBUL
*A jornalista viajou à Turquia a convite do Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT)