Erdogan, o novo sultão da Turquia
Em ofensiva contra críticos e oposição, o presidente Recep Tayyip Erdogan e seu partido AKP ampliam seus poderes e flertam com o autoritarismo
A cosmopolita Istambul, em que minaretes se contrapõem a modernas construções, é um espelho do crescimento da Turquia na última década. O lendário trânsito da cidade ficou ainda mais caótico, com 600 mil novos carros por ano nas ruas. Os taxistas reclamam quando o destino é o centro de Istambul em horário de pico e pedem aos passageiros indicações nos aplicativos para tentar driblar os engarrafamentos. Para aliviar o fluxo, novas linhas de VLT foram inauguradas a partir de 2006 e áreas de fluxo turístico foram fechadas aos carros. Para chegar a Sultanahmet, bairro turístico que abriga a majestosa Mesquita Azul e a Basílica de Santa Sofia, é mais fácil, rápido e barato pegar um trenzinho amarelo que serpenteia boa parte da cidade. Quem fica preso no trânsito se entretém com o movimento de contêineres carregados em navios nas margens do Mar de Mármara. Há também a magnífica vista do Estreito de Bósforo entre a Europa e a Ásia.
Até a crise de 2008, o crescimento anual da Turquia ultrapassava os 6%. Em 2010, atingiu impressionantes 9%. Os laços com a União Europeia se estreitaram no campo econômico, parte da estratégia de aproximação para uma eventual adesão como membro. Os louros são colhidos – e habilmente explorados – pelo atual presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. Sob seu comando, o governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), no poder desde 2003, apostou na ampliação de um mercado de consumo interno formado por 78 milhões de habitantes e em projetos de infraestrutura como propulsores de expansão. Em menos de uma década, o país triplicou sua renda per capita – hoje de US$ 10.500, segundo o Banco Mundial – e diminuiu a desigualdade com programas sociais.
A Turquia parecia que iria emergir no Oriente Médio como uma sociedade majoritariamente muçulmana, democrática e próspera. Essa perspectiva dourada passou a ser obscurecida pelo crescente autoritarismo de Erdogan. Nos últimos meses, discursos inflamados, críticas e processos judiciais de lisura duvidosa, além de violência contra jornalistas e veículos não alinhados com o governo, se tornaram norma. A ofensiva contra a crítica, o dissenso e a oposição capitaneada por Erdogan preocupa observadores internacionais e põe em xeque o status democrático do país. “Eu era crítico em relação a questões pontuais, mas apoiei (o governo). Ele conduziu uma política externa inteligente, que mostrava que conflito não se resolvia por meio de guerra. Ajudou a segurança e a economia do país”, diz o cientista político Şahin Alpay, repetindo o que parece ser opinião bastante popular entre centristas turcos.
Alpay era professor da Universidade de Bahcesehir e colunista do jornal Zaman, até o mês passado o periódico de maior circulação na Turquia. O jornal e outros veículos do grupo Feza Gazetecilik foram tomados no início de março por forças de segurança, por ordem judicial. Quem passa hoje na frente do jornal, em Istambul, pode facilmente confundi-lo com um edifício do Tesouro Nacional, tal o nível de segurança imposto no local: são dezenas de grades de segurança, carros-fortes estilo “caveirão” estacionados na porta e policiais armados. Os seguranças pedem que não se tirem fotos – “razões de segurança”, dizem.
O Feza e o Koza Ipek, outro conglomerado de mídia tomado pelo governo em outubro do ano passado, são vinculados ao movimento popular do clérigo turco Fetullah Gülen. Chamado informalmente de Hizmet (Serviço, na tradução do turco), o movimento foi essencial para a ascensão de Erdogan e do AKP no início dos anos 2000, mas os dois grupos se distanciaram. Hoje, Gülen não só é desafeto mortal de Erdogan como foi incluído na lista oficial de terroristas do país (o clérigo vive nos Estados Unidos desde 1999). No final de 2013, uma série de investigações que apuravam um esquema de corrupção que atingiria o mais alto escalão da administração do AKP foi deflagrada. Em resposta, Erdogan se disse alvo de um complô orquestrado pelo movimento de Fetullah Gülen, a quem ele acusa de formar “um Estado paralelo” dentro das instituições do país, com a intenção de dar um golpe.
Desde então, Erdogan tem estendido seus tentáculos sobre o Judiciário turco, trocando juízes e promotores considerados não leais ao governo – centenas foram demitidos desde 2014 e trocados por oficiais alinhados ao AKP. “O macarthismo encontrou sua melhor expressão na Turquia”, afirma Alpay, que, assim como todos os outros colunistas do Zaman, foi demitido dias depois da tomada do jornal. A ofensiva capitaneada por Erdogan não se restringe aos apoiadores de Gullen. Em janeiro, 27 acadêmicos foram presos, acusados de apologia do terrorismo, por assinar um manifesto com críticas às ações do governo em relação aos curdos. Com a derrocada das negociações de paz em julho de 2015 entre o governo turco e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), grupo militante separatista e classificado como terrorista pelas autoridades turcas, a violência voltou a eclodir no país. Houve atentados terroristas na capital, Ancara, e as forças de segurança passaram a fazer incursões em bairros e cidades do sudeste do país, território curdo. Dezenas de civis morreram no fogo cruzado.
O Partido Popular Democrático (HDP, na sigla em turco), que representa a minoria curda no Parlamento, também passou a ser alvo de investigações e devassas pela acusação de apologia do terrorismo. “A definição de terrorismo na Turquia já é ampla e Erdogan quer ampliá-la ainda mais para que qualquer um que o critique possa ser enquadrado como terrorista”, diz Hiyar Özsoy, vice-presidente de Relações Exteriores do HDP. Erdogan defende a retirada da imunidade judicial de parlamentares do HDP para que eles possam ser processados como terroristas. “Ele está patrocinando uma política de polarização, dividindo a população entre os que são leais a ele e os que são qualificados como terroristas e criminosos”, diz Özsoy.
Os arroubos autoritários de Erdogan podem ser sentidos até no exterior. Em visita a Washington na quinta-feira, dia 31, para participar de uma cúpula nuclear, seus seguranças tentaram intimidar e impedir a entrada de alguns jornalistas que queriam acompanhar o evento – e participar de uma entrevista coletiva no final. Circulava a informação de que o presidente americano, Barack Obama, não receberia Erdogan para um encontro pessoal, o que levou um jornal governista turco a decretar que as relações entre Estados Unidos e Turquia “estavam à beira do colapso”. Balela: além da reunião formal com o vice-presidente americano, Joe Biden, Erdogan tinha na agenda uma conversa informal com Obama, que, de fato, não anda muito satisfeito com Erdogan. Assim como os países europeus, o governo americano tem feito críticas (tímidas) aos ataques de Erdogan a seus opositores. Obama precisa do apoio da Turquia – e, para tal, disposição de seu presidente – no combate ao Estado Islâmico na Síria. Os países europeus também esperam cooperação da Turquia para estancar o fluxo de refugiados sírios que, desesperados, teimam em chegar à Europa.
Ciente de que está com trunfos na mão para barganhar com seus aliados no Ocidente, Erdogan está numa posição confortável para tentar ampliar seu domínio quase irrestrito do cenário político da Turquia. Em dias de conflito na vizinha Síria e de sucessivos atentados terroristas de jihadistas islâmicos e militantes curdos em solo turco – foram três só em março –, seu estilo “homem forte” agrada ao turco médio. Entre seus defensores e apoiadores, Erdogan detém um status quase mítico. Para os críticos e opositores, ele pode ter tido seus méritos, mas converteu-se em um déspota.
Erdogan, que hoje tem 64 anos, emergiu na política turca no começo dos anos 1990, como prefeito de Istambul. Ele articulou uma coalizão de partidos de orientação conservadora islâmica, que permitiu que ele fundasse o AKP, em 2001, e chegasse ao poder. Para isso, adotou um discurso pró-Ocidente e defendeu um discurso moderado, conservador nos costumes, mas “paz e amor” nos outros setores. Nos últimos cinco anos, Erdogan, porém, passou a tentar ampliar seus poderes de todas as formas. Ao deixar o cargo de premiê, em 2014, tornou-se presidente. Sua meta, desde então, passou a ser um referendo popular que transforme o sistema político do país, de parlamentarismo em presidencialismo – e lhe garanta poderes equivalentes aos de um sultão.
Embora, no papel, Erdogan, como presidente, tenha apenas funções cerimoniais de chefe de Estado, até os azulejos da Mesquita Azul sabem que, na prática, ele também acumula o governo. As ordens e as diretrizes para o país saem do palácio presidencial – e ele está cada vez mais agarrado ao poder. “A situação está se deteriorando desde 2011”, diz a jornalista turca Yasemin Çongar, da organização P24, fundada para fortalecer o jornalismo independente na Turquia. Segundo ela, jornalistas considerados “indesejáveis” passaram a ter suas credenciais oficiais cassadas e a ser expulsos de entrevistas coletivas, inviabilizando seu trabalho. “Todas as vozes críticas começaram a perder seus empregos por expressar suas opiniões”, diz Çongar.
Quem não desiste – ou é preso e processado – tem de se alinhar ao governo. Em 2013, quando multidões de jovens tomaram o Parque Gezi, no coração de Istambul, para se manifestar contra a construção de um shopping no local e, depois, pelo próprio direito de protestar, a repressão da polícia deixou uma dezena de mortos e centenas de feridos. Na ocasião, mesmo com a cidade mais importante do país em chamas, a CNN Turk – considerada uma emissora governista e acrítica – optou por exibir um documentário sobre a vida dos pinguins. Desde então, os veículos de comunicação vistos como alinhados ao AKP passaram a ser apelidados de “mídia pinguim” pela oposição e a se tornar cada vez mais a única voz na Turquia.
Hoje, o Parque Gezi dos protestos resiste como uma das últimas áreas verdes do centro de Istambul. Mesmo com um início de primavera atipicamente frio, é possível ver jovens, famílias e trabalhadores dos arredores que ocupam o local na hora do almoço em busca de um pouco de ar livre em meio à rotina. O legado dos protestos de três anos atrás, no entanto, parece se resumir à própria existência do parque. “Gezi nos ensinou a estar nas ruas, mas hoje é difícil. A cada dia que passa, nós nos sentimos como párias dentro de nosso país”, diz o engenheiro Berkay Yildiz, de 31 anos. Quando os protestos eclodiram, ele e a então namorada, Ozden (hoje sua mulher), passavam boa parte de seus dias no parque. “Eu ia para o trabalho, saía e voltava para Gezi”, diz Ozden, advogada de profissão. “Nacionalistas, curdos, esquerdistas, todos estavam juntos em Gezi, mas isso acabou”, diz Berkay. Os dois ativistas não vislumbram, num futuro próximo, manifestações em massa contra o governo do AKP. “Há uma guerra civil na Turquia, e ninguém fala disso. Como eu posso estar feliz e esperançosa com o futuro?”, afirma Ozden. O casal diz que pensou em deixar o país, mas com um filho recém-nascido, Umut (Esperança, na tradução do turco), optou por ficar.
Especula-se que Erdogan quer estender sua presença no governo turco até 2023 – quando a Turquia celebrará o centenário da fundação da república. Se conseguir o feito, Erdogan terá se mantido por 20 anos como principal figura política do país, dois a mais que o fundador da república e maior referência da Turquia moderna, Mustafa Kemal, o Atatürk, “pai dos turcos”. Os ventos, por hora, sopram a favor dos planos de Erdogan. Entre apoiadores ávidos, críticos acuados e uma oposição desarticulada, não há perspectiva para que o novo “sultão” da Turquia seja destronado.
TERESA PEROSA, DE ISTAMBUL
* A jornalista Teresa Perosa viajou a convite do Centro Cultural Brasil-Turquia, ligado ao Movimento Gülen
Fonte: http://epoca.globo.com/