A Turquia caminha para a instabilidade
Partido do governo perde a maioria no Parlamento, em um prenúncio de instabilidade política que pode fazer a Turquia ter de se reinventar para manter sua influência
Em uma região conhecida por suas ditaduras e monarquias absolutistas, veio das urnas um fato novo que pode provocar mudanças geopolíticas significativas. No domingo 7, cerca de 50 milhões de cidadãos da Turquia elegeram um novo parlamento, tirando do AKP, como é conhecido o Partido Justiça e Desenvolvimento, a maioria da qual a sigla desfrutava desde 2003. O resultado enfraquece o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, principal nome do AKP, e coloca em dúvida a capacidade da Turquia de continuar sua ascensão no Oriente Médio.
A estrela das eleições turcas foi o Partido Popular Democrático, o HDP. Sigla de esquerda com raízes na significativa minoria curda (18% da população), o HDP jamais tinha concorrido de forma unificada nas eleições parlamentares, preferindo lançar candidatos independentes. A estratégia era uma forma de contornar a cláusula de barreira do sistema eleitoral turco, que não vale para os candidatos individuais, mas bloqueia a entrada no congresso de partidos com menos de 10% dos votos. Em 2015, o HDP mudou de tática. Além de contar com a simpatia dos curdos, a sigla apostou em pautas progressistas: as mulheres eram 49% dos nomes na chapa e o partido teve o primeiro candidato abertamente gay da história da Turquia, Baris Sulu.
Além disso, o HDP conseguiu capitalizar a crescente rejeição à postura autoritária de Erdogan. O partido transmitiu à população o recado de que o rompimento da barreira dos 10% de votos e a consequente entrada no Parlamento significaria uma derrota para o AKP. Era um risco, pois o HDP poderia acabar sem representação. Mas valeu a pena: o partido obteve 13,1% dos votos e 80 dos 550 assentos do Parlamento.
O resultado é uma derrota ruidosa para Erdogan. Por 12 anos, ele foi o homem-forte do governo turco, responsável por transformar o AKP de um partido islamista, nos moldes da Irmandade Muçulmana egípcia, em um modelo de conciliação entre o islã político e a democracia. A Turquia também se transformou. Virou uma parceira estratégica dos Estados Unidos e da Europa e uma potência econômica, crescendo por uma década a uma média de 5,3%. Encorajado pela força eleitoral do AKP, baseada sobretudo em eleitores conservadores e concentrada na planície central da Anatólia, Erdogan enveredou pelo caminho do autoritarismo a partir de 2011. A postura abusiva foi escancarada ao mundo em 2013, durante a brutal repressão contra as manifestações iniciadas no Gezi Park e praça Taksim, em Istambul.
Desde então, Erdogan não retrocedeu. Liderou uma perseguição a jornalistas, entrou em choque com o Judiciário e tentou censurar redes sociais como o Facebook e o Twitter. Quando uma investigação de corrupção envolvendo diversos ministros do AKP e um de seus filhos surgiu, Erdogan voltou suas forças contra o Hizmet, movimento político religioso liderado por Fethullah Gülen, pensador muçulmano autoexilado nos EUA. Influente em setores como a polícia e o Judiciário, o Hizmet foi acusado de golpismo e, eventualmente, as investigações foram arquivadas. Mais grave, Erdogan agiu para modificar o sistema político turco em benefício próprio.
Em 2014, Erdogan deixou a liderança do AKP para se candidatar à presidência. Eleito com 52% dos votos, passou a defender que a Turquia adotasse um regime presidencialista em detrimento do atual, parlamentarista, o que daria a ele muito mais poder (e exigiria uma nova maioria parlamentar). Nas eleições, Erdogan abandonou a neutralidade recomendada para seu cargo e fez campanha aberta para o AKP. Apresentado pelo HDP e por outros partidos como um risco à democracia turca, Erdogan pode ter sido o fator decisivo no insucesso do AKP na busca pela maioria parlamentar.
O futuro político imediato da Turquia é uma incógnita. Como presidente, Erdogan deve entregar a formação de um novo governo ao líder de um partido capaz de fazer isso. O AKP obteve 258 dos 550 cadeiras legislativas, mas precisaria de 276 para ter maioria. Uma coalizão é possível, mas improvável. Segundo colocado, com 132 assentos, o nacionalista CHP forma a oposição mais tradicional ao AKP. O parceiro mais provável seria o MHP, de direita, terceiro colocado com 80 assentos, mas o partido é contrário às negociações de paz entre o governo e o PKK, a insurgência curda que age a partir do Iraque. Sobraria o HDP, que teme a entrada em uma coalizão neste momento. Neste cenário, a Turquia pode se ver diante de um governo de minoria ou ter um período de transição para eleições antecipadas, cujo objetivo seria rearranjar o jogo de forças no parlamento.
A situação prenuncia instabilidade política, e traz memórias desagradáveis para os turcos. Nos anos 1970 e 1990, o país teve governos de coalizão que não conseguiram dar um rumo concreto à administração. A chegada de Erdogan e do AKP ao poder, sempre governando sozinho, modificou a conjuntura. O país se engradeceu e conseguiu fazer sua força interna se refletir nas relações exteriores. Por mais de dez anos, a Turquia ganhou influência política e econômica em seu entorno, criando o que alguns estudiosos classificaram de neo-otomanismo – uma tentativa de influenciar os países que outrora fizeram parte do Império Otomano, cujo centro era a atual Turquia. Nos últimos anos, a Turquia emergiu como força regional no Oriente Médio e buscou ampliar seu destaque.
A tentativa de mediação em 2010, ao lado do Brasil, das negociações sobre o programa nuclear iraniano, era uma forma de ganhar proeminência internacional. Mais recentemente, o governo do AKP se uniu ao Catar em um “bloco islamista” que fez oposição ao grupo formado por Arábia Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos. No Egito, onde o AKP apoiou firmemente a Irmandade Muçulmana, na Líbia e na Palestina, essa cisão entre Turquia e Arábia Saudita ficou particularmente clara. Turcos e sauditas, entretanto, estão do mesmo lado quando se trata da Síria. Ambos contribuíram para a formação do Estado Islâmico por serem contrários ao ditador Bashar al-Assad.
Com a provável instabilidade política que se seguirá, a Turquia tende a se voltar para seus problemas internos e reduzir a atuação no exterior. Ainda assim, dificilmente as questões geopolíticas serão ignoradas: desde 2011, a Turquia recebeu 1,7 milhão de refugiados sírios, uma migração que colocou um peso grande sobre as instituições e a sociedade turcas e ajudou a minar a força política do AKP nas regiões da fronteira com a Síria.
O quadro para Erdogan e o AKP é ruim, mas ainda é cedo demais para cravar a derrocada do partido. A sigla foi a mais votada e continua sendo a única capaz de amealhar uma significativa quantidade de votos em todo a Turquia. Em um novo pleito, basta ao partido conseguir alguns pontos percentuais a mais para renovar a maioria parlamentar. É prematuro, também, assinalar uma queda da Turquia. As eleições foram uma incrível demonstração de força do sistema democrático local. O comparecimento às urnas foi maciço (86%) e as fraudes eleitorais, insignificantes. Além disso, o resultado foi aceito por todos os partidos de forma pacífica.
O saldo das urnas indica a rejeição à figura autoritária de Erdogan, ainda que ele tenha sido a face da estabilidade e do ganho de proeminência da Turquia nos últimos anos. Ao rechaçar o presidente, a população admitiu a hipótese de a instabilidade política voltar a afetar negativamente o país. Isso, entretanto, ficou em segundo plano diante da temida guinada ditatorial. Se a Turquia conseguir superar o atual impasse de maneira sóbria, respeitando as instituições e o desejo das urnas, pode retomar sua ascensão demonstrando que a busca por influência é um projeto de Estado e não de um governo específico. Será uma forma de renovar sua imagem e indicar à comunidade internacional que o país está mesmo pronto para ser uma liderança regional duradoura.
por José Antonio Lima
Fonte: www.cartacapital.com.br