Estou assistindo a crise do coronavírus de uma prisão turca. É por isso que tenho esperança.
Ahmet Altan é um romancista turco, jornalista e fundador do agora extinto jornal Taraf. Ele é o autor das memórias contrabandeadas da prisão “Nunca mais voltarei a ver o mundo”.
Hoje em dia, estar em uma prisão real, enquanto todo mundo está confinado em suas casas, parece ser como estar sentado em um aquário no fundo do oceano.
Eu posso ver (lendo os jornais antigos que os guardas nos dão e assistindo alguns dos canais que estamos autorizados a assistir) que vocês estão morrendo de medo. Bem, eu tenho 70 anos e estou em uma prisão onde casos de COVID-19 estão se espalhando rapidamente, todos eles estão aqui por ofenderem, com supostas “mensagens subliminares”, o governo do presidente turco Recep Tayyip Erdogan. Como alguém que sabe mais sobre sentar no fundo do oceano e ser o alvo da morte do que a maioria, gostaria de lhe dizer uma coisa: não ceda ao desespero.
Estamos testemunhando a ruptura da história ao longo de uma gigantesca linha de falha que está fazendo a própria vida tremer. Essa ruptura nos promete um futuro promissor.
Estou ciente dos horrores que todos estão passando. Como bilhões de antílopes que tiveram que atravessar um rio cheio de crocodilos, estamos lutando freneticamente para permanecermos vivos e alcançarmos o outro lado. A passagem é infernal. Mas em alguns meses, esse desastre terminará e a humanidade chegará a uma nova era.
Esta é a ordem deste planeta estranho. Melhores circunstâncias são alcançadas apenas através de desastres. Nós progredimos mesmo com feridos em guerras e pandemias.
Esse desastre nos mostrou muitas verdades que há muito ignoramos; também nos apontou o destino para onde vamos chegar. Acho que o século XXI começará assim que essa pandemia terminar. Por um tempo, pode parecer que estamos derrapando, regredindo, mas isso não vai durar muito.
Essa pandemia nos mostrou que as invenções chamadas “estados” não servem para nada. Toda a estrutura dos estados claramente expirou. É contra a natureza que um sistema administrativo da época das carroças a cavalo ainda esteja em vigor. Estados impedem o progresso humano. A pandemia ficou fora de controle por causa dos erros cometidos pelos Estados e seus administradores devido à ganância pelo poder. Se em primeiro lugar a China não tivesse mentido, e se os líderes de outros países não tivessem demonstrado uma falta de preocupação, esse flagelo não teria alcançado tal enormidade.
Em um futuro não tão distante, o mundo se tornará uma federação de cidades-estado — ele perceberá que não tem outra escolha. Nações, fronteiras e bandeiras trabalham contra o bem da humanidade durante desastres em comum, como experimentamos durante essa crise.
Vimos ainda outra verdade: a capacidade de vencer eleições e a capacidade de liderar uma sociedade são habilidades totalmente diferentes — habilidades que estão em guerra entre si. As eleições são muitas vezes vencidas pelos que mais mentem, que fazem uma fanfarra maior do que outros. Mas essas mesmas pessoas não podem liderar com sabedoria. Vimos muitos exemplos desse fenômeno.
Esse desastre também foi o ensaio geral de uma grande mudança na história: trabalhadores saindo de seu lugar tradicional na cadeia de produção. Graças à Internet, a contribuição intelectual das pessoas para a produção aumentou, enquanto seu papel físico diminuiu significativamente. No século 21, as pessoas não se limitarão ao trabalho físico. Estamos percebendo a inevitabilidade da mudança enquanto vivemos esse episódio, descobrindo uma nova ordem econômica.
Estamos aprendendo que algumas pessoas que têm mais dinheiro do que podem gastar, enquanto outras permanecem sem dinheiro e sem abrigo, podem criar um desastre “comum”. Se você não pode salvar um trabalhador comum na China, você não pode salvar o primeiro ministro na Inglaterra.
Isso pode levar a uma grande mutação. Se você quer se proteger, precisa proteger os outros. Atos egoístas vão te matar. As pessoas perceberam talvez pela primeira vez e com uma consciência tão clara que fazem parte de um grande fluxo chamado humanidade.
Este vírus não só derruba homens velhos como eu, mas também todos os tipos de conceitos, crenças e idéias datados. Estamos atravessando dolorosamente o limiar de um novo mundo e, ainda mais importante, de um novo tipo de ser humano.
No meio desse grande trauma, estou otimista em relação ao futuro. O que venho falando aqui não é utopia. Não é o meliorismo de um tolo. Acredito que o que estou dizendo vai acontecer e sei que não estarei por perto para ver isso acontecer. Estou escrevendo isso enquanto aguardo em uma cela o ataque feroz de um vírus que mata pessoas da minha idade. Não sou otimista por mim mesmo, mas pela humanidade da qual faço parte.
Em novembro, recebemos um rabanete com as refeições na hora do almoço. Meu colega de cela colocou esse rabanete em um copo de papel e o deixou ao lado das barras de ferro na janela. O rabanete começou a apodrecer. Recentemente, um broto verde emergiu dele. Cresceu e cresceu. Pequenas flores brancas floresceram no final do broto. Todas as manhãs, levanto-me e olho essas flores. Testemunho este grande clichê: o rabanete está morrendo e se tornando vivo ao mesmo tempo. Um rabanete miserável cria flores a partir de sua própria decomposição. Sem abrir mão de seu otimismo, alcança o futuro à medida que morre.
Talvez eu tenha ficado doente quando você ler isso. Mas que diferença isso faz? Se um rabanete morrendo em um copo de papel pode florescer, um velho preso pode ficar otimista.
Não vamos estar mais desesperados do que um rabanete agora, não é?
Fonte: Opinion | I’m watching the coronavirus crisis unfold from a Turkish prison. This is why I’m hopeful.