Conflito de identidades e futuro da Turquia
Por Bayram Ozturk*
A tentativa fracassada do golpe dá sinais de que os conflitos constantes de identidade turca estão chegando a uma síntese. Para entender, é preciso rever a história dos últimos cem anos. O regime da República da Turquia, fundada em 1923 após o colapso do Império Otomano, foi pensado como um Estado-nação moderno. Foram feitas muitas reformas com a máquina estatal. O povo foi forçado a escolher entre os valores religiosos e culturais e as reformas.
A Turquia conseguiu ser um Estado moderno, mas não de direito. Foi construída a figura de “um homem só”, que jamais poderia ser questionado. Estado-nação era o “Estado de Ataturk” — Mustafa Kemal Ataturk, fundador do país. E seu maior problema sempre foi o conflito entre religião e Estado.
Depois de Ataturk, a autoridade foi assumida pelas Forças Armadas. Seu maior dever foi a proteção da revolução, e seus maiores inimigos eram os que não queriam abrir mão das identidades religiosa e cultural. Esse foi o motivo dos golpes militares de 1960 e 1997. Justamente neste momento, Erdogan aparece como ator político. Vinha da origem (islamista) que os militares queriam transformar, e levava os pedidos de seus apoiadores ao poder. Por isso, os militares tramaram outro golpe, mas os planos foram decifrados e eles foram presos.
Erdogan substituiu Ataturk e, em vez de um Estado-nação, optou por um país líder na região; em vez de revoluções, as políticas foram baseadas na religião. Para realizar sua agenda, deixou a política de “zero problema com vizinhos” e optou por políticas mais simpáticas aos povos do Oriente Médio, para administrar a região a partir da Turquia. A nova política apontava para Síria, Gaza e Egito. O plano era derrubar o regime hegemônico da minoria de Assad na Síria, dar uma lição dura a Israel, com liberdade à Faixa de Gaza e o fim do bloqueio, e o apoio técnico a Mursi para levar a experiência de seu partido ao Egito.
Ao mesmo tempo, queria o apoio de todos os movimentos religiosos da Turquia, e iniciava um grande projeto de paz com os curdos. Nessa hora ficou claro que os pensamentos de Fethullah Gülen não eram compatíveis. As declarações e criticas abertas do clérigo incomodaram Erdogan. E ele quis mostrar aos que não o estavam obedecendo cegamente o que era capaz de fazer, usando o Hizmet como exemplo. Acusou abertamente Gülen de trabalhar para Israel e EUA e afastou de cargos públicos seus simpatizantes. Por fim, quando o projeto de remodelação do Judiciário foi aprovado no Parlamento, os militares perceberam que chegara sua vez de serem perseguidos e reagiram. Mas o golpe fracassado deu a chance de expurgar milhares de funcionários públicos.
Ficou claro que ele não quer ajudar a Turquia nem a região: apenas tem a satisfação temporária de poder. A política externa faliu. O sonho de “domínio da região” foi substituído pelo medo de “sem ele o país vai afundar”. Falta um passo para entender que suas ambições pessoais é que estão afundando o país. Por outro lado, ficou claro que, na Turquia do século XXI, nem os princípios de Ataturk, nem os ditadores que utilizam a religião, como Erdogan, conseguirão se sustentar.
Está aumentando o número de pessoas que acreditam na necessidade de mais democracia, mais respeito aos direitos humanos, mais o funcionamento de estado de direto e mais liberdades fundamentais, muito mais do que Kemalistas e anti-Kemalistas acreditam.
Isso quer dizer que, parece que chegou o fim do caminho para os Kemalistas radicais e para políticos islamistas na Turquia.
BAYRAM OZTURK, jornalista turco. Foi membro do conselho editorial do jornal “Zaman”, fechado no final de julho pelo governo turco. O periódico era ligado ao grupo do clérigo Fethullah Gülen, a quem o presidente Erdogan acusa de instigar o golpe no país
Obs.: Este artigo foi originalmente publicado no jornal O Globo.