A posição de Gülen sobre democracia, direitos humanos e minorias
Democracia
Fethullah Gülen reconhece a democracia como único sistema político viável. Ele condena o uso de religião como ideologia política ao mesmo tempo em que encoraja a todos os cidadãos a assumirem uma posição responsável e consciente na vida política de seus países. Gülen enfatiza a flexibilidade dos princípios islâmicos sobre governança e a compatibilidade deles com a verdadeira democracia [1].
Em entrevista a Zeki Saritoprak, Fethullah Gülen expressou suas opiniões sobre democracia [2]:
Saritoprak: É possível reconciliar Islã com Democracia? O que o senhor acha da falta de democracia em muitos países muçulmanos? O senhor vê esta falta de democracia como um déficit para as nações muçulmanas?
Gülen: Com relação ao Islã e democracia, é necessário lembrar que o primeiro é uma religião divina e celestial, enquanto o segundo é uma forma de governo desenvolvido por humanos. O propósito da religião é fé (iman), servidão a Deus (‘ubudiyyah), conhecimento de Deus (ma’rifah), e boas ações (ihsan). O Alcorão, em suas centenas de versos, convida as pessoas à fé e adoração ao Verdadeiro (al-Haqq). Ele também chama as pessoas a servirem a Deus de uma maneira que possam obter maior consciência de ihsan. “Acreditar em boas ações” está entre os assuntos que o Alcorão enfatiza. Ele também lembra às pessoas de que elas devem desenvolver uma relação consciente com Deus e devem agir como se pudessem ver a Deus ou como se Deus as visse.
A democracia em si não é um sistema governamental unificado; raras vezes ela é apresentada sem afiliação. Em muitos casos, outros termos – por exemplo, social, liberal, cristã ou radical – são adicionados como prefixo. Em alguns casos, uma delas não considera as outras como democracia. No entanto, nos dias de hoje, democracia é, frequentemente, mencionada em sua forma independente, ignorando sua natureza pluralística. Em contrapartida, muitos falam da religião como equivalente à política. Na verdade, esta é apenas uma das muitas faculdades da religião. Tal percepção resulta numa série de opiniões sobre a questão da reconciliação entre Islã e democracia. Apesar de esses termos não serem vistos como opostos, é evidente que são diferentes.
De acordo com um dos conceitos existentes, o Islã é tanto uma religião quanto um sistema político. Ele se expressa em todos os aspectos da vida, incluindo as esferas individual, familiar, social, econômica e política. Por esse ângulo, confinar o Islã apenas à fé e oração significaria estreitar seu campo de interação e interpretação. Muitas ideias foram desenvolvidas a partir dessa perspectiva e, recentemente, elas fizeram com que o Islã fosse visto como uma ideologia. Segundo alguns críticos, tal abordagem fez do Islã apenas mais uma entre muitas ideologias políticas. Essa visão do Islã como ideologia totalitária vai contra o espírito o Islã, que promove o Estado de Direito e rejeita abertamente a opressão contra qualquer segmento da sociedade. O espírito do Islã também promove ações para melhoria da sociedade de acordo com a opinião da maioria. Aqueles que seguem uma linha mais moderada acreditam, ainda, que seria melhor introduzir o Islã como complemento à democracia em vez de apresenta-lo como ideologia. Tal introdução do Islã pode ter um papel importante no mundo muçulmano e no enriquecimento das democracias locais existentes, de forma que ajude os humanos a desenvolverem sua compreensão e a relacionarem os mundos espiritual e material.
Acredito que o Islã também enriqueceria a democracia por responder a necessidades humanas profundas, por exemplo, satisfação espiritual, que não pode ser alcançada exceto pela adoração ao Senhor Eterno.
Sim, é doloroso ver, no mundo islâmico – especialmente em meu país, a Turquia -, aqueles que falam sobre o Islã e democracia, e que alegam falar em nome da religião, chegarem à conclusão de que Islã e democracia não podem ser reconciliados. Essa percepção de incompatibilidade mútua também se estende a algumas pessoas pró-democracia. O argumento apresentado é baseado na ideia de que a religião islâmica é baseada nas leis de Deus, enquanto a democracia é baseada na percepção de humanos que se opõem àquelas. No meu entender, no entanto, há outra ideia que se torna vítima de tal comparação superficial entre Islã e democracia. A frase “soberania pertence incondicionalmente à nação” não significa que a soberania foi tirada de Deus e dada a humanos. Ao contrário, significa que a soberania foi confiada aos humanos por Deus, ou seja, ela foi tirada de indivíduos opressores e ditadores e dada aos membros da comunidade. De certa forma, os Califas Bem-Orientados do Islã ilustram a aplicação desse tipo de democracia. Cosmologicamente, não há dúvida de que Deus é soberano sobre tudo no universo. Nossos pensamentos e planos estão sempre sobre o controle e poder do Onipotente. Contudo, isso não significa que não temos vontade, inclinação ou escolha. Humanos são livres para fazer escolhas em suas vidas pessoais. Eles também são livres para fazer escolhas sobre suas ações sociais e políticas. Podem haver tipos diferentes de eleições para escolha de legisladores e governantes. Não existe uma maneira única de eleição; isso foi verdade até na Era da Bem-Aventurança, os tempos do Profeta do Islã, e durante o período dos Quatro Califas, que Deus se agrade deles. A eleição do primeiro califa, Abu Bakr, foi diferente da do segundo, Califa Omar. A eleição de Otman foi diferente da eleição de Ali, o quarto califa. Somente Deus sabe qual é o método correto de eleição.
Além do mais, democracia não é uma forma imutável de governo. Ao olharmos a história do desenvolvimento da democracia vemos erros seguidos de mudanças e correções. Devido a essas mudanças, alguns veem esse sistema com hesitação. Talvez essa seja a razão pela qual o mundo muçulmano não vê a democracia com entusiasmo. Além da falta de entusiasmo, a violência de governantes despóticos, que veem a democracia como ameaça ao despotismo, é outro obstáculo para democracia em nações muçulmanas.
Direitos Humanos
Direitos humanos são tema recorrente na filosofia de Fethullah Gülen. Além disso, a visão de Gülen sobre democracia, pluralismo, direitos humanos e liberdade de religião promove os valores e normas dos direitos humanos.
Gülen vê os direitos humanos a partir de três perspectivas: (i) o valor inerente da liberdade com relação à liberdade de escolha e força de vontade; (ii) o valor eventual da liberdade com relação ao desenvolvimento pessoal e social; (iii) direitos humanos metafísicos (kul hakki, em turco).
Gülen vê os humanos como centro do universo. Para ele, humanos são o propósito da Criação. Seguindo o conceito islâmico tesawuf (grosseiramente traduzido como “significado e espírito do Islã”) de “toda beleza e justiça deve ver e ser vista”, Gülen afirma que Deus é Belíssimo e Justíssimo e que Ele deseja ver a Sua beleza e que ela seja vista. Por essa razão, Deus criou os humanos. Humanos têm faculdades intelectuais, emocionais e físicas para observar, questionar, entender, admirar, adorar e amar a Deus. Assim, humanos foram criados seres inteligentes e conscientes que podem ir da Criação ao Criador, se maravilhar com a beleza e majestade da arte divina e alcançar certa estimativa e compreensão dos atributos, nomes e qualidades de Deus. Gülen argumenta que toda criação manifesta os nomes e atributos infinitos de Deus e que humanos são “espelhos inteligentes” que podem ver o que a Criação manifesta e apreciar seu Criador.
Contudo, há um “botão mágico” nos humanos que faz tudo isso acontecer e os diferencia dos anjos, que também se maravilham, adoram e amam a Deus: a escolha. A “escolha” é o que faz humanos serem humanos. O fato de que o homem escolhe reconhecer e adorar a Deus muda tudo. Gülen explica que com essa escolha, humanos podem superar os anjos em compaixão ou ser piores que os demônios em barbárie. Deus quer que os humanos O “escolham”. Dessa forma, a escolha foi concedida aos humanos como presente e, simultaneamente, como um teste de Deus.
Uma vez que o assunto é abordado a partir desta perspectiva – ver a liberdade de escolha como atributo concedido aos humanos por Deus – o direito do indivíduo à própria humanidade se torna intrínseco, inerente e inalienável.
Ser livre e aproveitar a liberdade são parte significativa da profundidade da vontade humana e uma porta misteriosa através da qual o homem pode ir além nos segredos do eu. O indivíduo que é incapaz de mergulhar naquela profundidade ou de cruzar aquela porta dificilmente pode ser chamado humano.
Em suma, o universo foi criado para os humanos; o humano é definido por sua capacidade de escolha. A escolha é protegida pela liberdade. A liberdade, portanto, permite que humanos cumpram o propósito da Criação. Assim, para Gülen, direitos humanos que protegem a liberdade de escolha têm um valor inerente e devem ser protegidos a todo custo para preservar o equilíbrio entre Criação e o propósito da existência.
Apesar de essa não ser uma ideia nova e muitos eruditos islâmicos compartilharem a mesma opinião, o fato de que Gülen tenta fazer a conexão lógica entre a definição religiosa de “escolha” e a doutrina não religiosa de “normas e práticas de direitos humanos” é muito importante [3].
Minorias
A abordagem de Fethullah Gülen com relação a minorias e direitos de minorias pode ser compreendido na estrutura geral de democracia e direitos democráticos. Além disso, os esforços de Gülen por diálogo interreligioso e tolerância na Turquia também melhoraram a abordagem geral com relação a minorias daquele país. Apesar de a Turquia ser um país laico, o status das minorias é determinado de acordo com afiliação religiosa. O conceito de “minorias” aceito pela República da Turquia foi definido pelo Tratado de Lausanne de 1924, e, assim, limitado estritamente a gregos, judeus e armênios, apenas em assuntos religiosos. Desde então, gregos ortodoxos, armênios gregorianos e judeus são considerados grupos minoritários na Turquia.
Os esforços de Gülen no diálogo interreligioso começou com encontros entre ele e líderes daquelas religiões na Turquia e depois se expandiram a outros países. Gülen provou por meio de sua filosofia, declarações e ações que o Islã é uma religião de paz, mesmo que seja quase sempre associada, no ocidente, a fundamentalismo, extremismo e violência por causa de radicais no mundo islâmico. Gülen é famoso por ter estabelecido laços com o falecido Papa João Paulo II, o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla, o Patriarca Armênio Mesrob II Mutafyan e diversos representantes de outras religiões [4].
As ações de Fethullah Gülen foram bem recebidas, também, por líderes de minorias na Turquia. Numa seção de oração, o Vigário da Igreja Católica Apostólica Romana em Istambul, Monsenhor Georges Marovitch, agradeceu a Gülen por seus esforços pioneiros em promover a paz na Turquia e pelo processo de diálogo. Marovitch disse: “Hocaefendi é como um modelo de Mevlana dos nossos tempos. Ele convida a todos, sem discriminar ninguém. Sua porta está aberta a todos e nós respondemos ao seu chamado.”
O proeminente empresário judeu Ishak Alaton disse: “Conferências foram realizadas no Centro de Esportes e Exibições Istambul. A sala estava completamente cheia. Cera de 3 ou 4 mil pessoas compareceram. Gülen entraria na sala acompanhado pelo Rabi da comunidade judia à sua esquerda e o Patriarca Ortodoxo Grego Bartolomeu, ou o Patriarca Mesrob II [Mutafyan] à sua direita. Eles se apresentariam como praticantes de três diferentes religiões. A audiência os aplaudiria entusiasmadamente. As pessoas aplaudiram a amizade, irmandade e aproximação interreligiosa. Esse foi, em grande parte, resultado do trabalho de Fethullah Gülen e a sociedade lhe deu total apoio. Isso foi o que eu vivi. Eu compareci àquelas reuniões e concluí que elas são de vital importância [5]”.
No jantar iftar da Fundação de Jornalistas e Escritores em 2003, o Patriarca Armênio Mesrob II Mutafyan disse, “Pouco tempo atrás, até mesmo pessoas da mesma religião não se sentariam em volta da mesma mesa, mas agora pessoas de grupos religiosos diferentes estão se reunindo. Isso é muito importante para Turquia. Foi Fethullah Gülen e a fundação que ele, honorariamente, preside que uniram pessoas de fés distintas, pela primeira vez, em torno da mesma mesa e agora estamos caminhando pelo caminho que ele preparou”.
O Metropolitano Sírio, Mor Filksinos Yusuf Cetin também declarou que a contribuição de Gülen e seus amigos para as religiões abraâmicas e para a humanidade é muito importante. Disse: “Ninguém se atreveria a convidar cristãos e judeus para jantares iftar, mas agora ninguém pode nos separar”.
Todos essas declarações de líderes de grupos religiosos minoritários na Turquia ressaltam a importância do trabalho que Fethullah Gülen iniciou. Dado que Gülen é um erudito muçulmano respeitado na Turquia, suas ações são muito importantes nesse sentido.
Notas de Rodapé
[1] Cetin, Muhammed. 2010. Introducing Fethullah Gülen. Fethullah Gülen Forum (Introdução a Fethullah Gülen – Fórum Fethullah Gülen): http://fethullahgulenforum.org/articles/18/introducing-fethullah-gulen
[2]The Muslim World, Special Issue (O Mundo Muçulmano – Edição Especial), Julho 2005 – Vol. 95 Edição 3 Páginas 325-471
[3] Keles, O. Promoting Human Rights Values in the Muslim World: Towards an Inclusive Civilization in Gülen’s Thought and Practice (Promovendo Valores de Direitos Humanos no Mundo Muçulmano – Para a uma Civilização Inclusiva; a Filosofia e Práticas de Gülen): http://en.fgulen.com/conference-papers/peaceful-coexistence/2508-promoting-human-rights-values-in-the-muslim-world-towards-an-inclusive-civilization-in-gulens-thought-and-practice
[4] Kenes, Bulent. 2008. Gülen’s ideas address the entire world (As ideias de Gülen englobam o mundo todo). The Guardian: http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2008/jun/24/turkey.islam
{5] Dumanli, Ekrem. 2009. İshak Alaton: Ergenekon case a milestone for Turkey (Caso Ergenekon; um marco histórico para Turquia). Today’s Zaman: http://www.todayszaman.com/newsDetail_getNewsById.action?load=detay&link=176178
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