“Não existe estado de direito na Turquia hoje”, diz jornalista turco
O jornalista turco Abdulhamit Bilici comandava desde 2015 como editor-chefe o jornal Zaman, um dos periódicos de maior circulação na Turquia. Em março, a Justiça turca determinou a intervenção do governo no jornal, acusado de “propaganda terrorista”. Dias depois, Bilici deixou o país. O Zaman era parte do Grupo Koza Ipek, vinculado ao Hizmet, movimento civil ligado ao clérigo Fethullah Gülen. Antes um aliado do presidente Recep Tayyip Erdogan, Gülen é apontado pelo governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP em sua sigla em turco) como o responsável pela tentativa de golpe de Estado que deixou mais de 250 mortos em 15 de julho e foi seguido por uma brutal repressão contra a oposição no país. O clérigo, que mora nos Estados Unidos, nega seu envolvimento na trama. O governo turco já pediu sua extradição às autoridades americanas. Desde a tentativa, mais de 100 mil pessoas foram demitidas ou afastadas de seus cargos públicos e mais de 100 jornalistas foram presos, todos sob a justificativa de envolvimento ou apoio à tentativa de golpe. Bilici integra a lista de jornalistas cuja prisão foi decretada. Em entrevista a ÉPOCA por e-mail, ele falou sobre a situação atual da Turquia e afirma ter se “tornado impossível viver” no país.
ÉPOCA – O senhor ainda está na Turquia?
Abdulhamit Bilici – Eu tive de deixar a Turquia dez dias depois da tomada ilegal do nosso jornal e grupo de mídia. Devido à imensa pressão, ficou impossível viver na Turquia.
ÉPOCA – O senhor tem mantido contato com seus colegas de redação desde que deixou o jornal?
Bilici – Depois da tomada, no primeiro dia fui demitido como editor-chefe do jornal Zaman. O regime de Erdogan começou a administrar o jornal por meio de nomeados que são apoiadores fanáticos do AKP. Eles mudaram a política editorial do dia para a noite e submeteram nosso staff a uma pressão insuportável. Qualquer um que objetasse a nova política editorial pró-Erdogan foi demitido. Logo, eles trouxeram outras pessoas que pensam da mesma maneira, para fazer do jornal o que eles queriam. Nossos leitores protestaram quanto à mudança na política editorial e cancelaram suas assinaturas. Como resultado, a circulação caiu de 600 mil exemplares por dia para 2 mil, só na primeira semana. Nosso prédio foi cercado pela polícia e dentro da redação havia policiais por todos os lados. Depois da tentativa de golpe do dia 15 de julho, o AKP declarou lei marcial em todo o país e uma de suas primeiras decisões foi fechar o Zaman. Eles quiseram descontinuar a publicação mesmo com seu pessoal controlando. Todos os funcionários – cerca de 3 mil pessoas, considerando o grupo de mídia inteiro – foram demitidos. Todas as propriedades foram confiscadas. Mesmo essas medidas drásticas não foram suficientes para Erdogan. Em setembro, as cortes controladas pelo AKP determinaram a prisão de nossos editores, repórteres e muitos colunistas proeminentes. Eu também estava na lista de jornalistas que deveriam ser presos. A polícia invadiu minha casa, conduziu buscas, mas eu não fui preso porque não estava no país. Meus amigos ainda estão na cadeia e não consigo saber de seu estado de saúde. É impossível encontrar advogados para defendê-los. Na nova Turquia do AKP, não só advogados, mas muitos juízes e promotores estão na cadeia por motivos ideológicos. Atualmente, meus amigos do Zaman fazem parte da lista de mais de 130 jornalistas de diferentes origens ideológicas nas prisões da Turquia.
ÉPOCA – Depois da tentativa de golpe, em julho, o governo começou um processo já considerado como um “expurgo”, que atingiu mais de 100 mil pessoas entre demissões e afastamentos. O governo do AKP argumenta tratar-se de medidas necessárias para eliminar a influência do movimento Hizmet, vinculado ao clérigo Fetullah Güllen, apontado como o mentor do golpe. Como o senhor vê esse processo?
Bilici – Como eu descrevi acima, não há devido processo legal nem independência do Judiciário. Qual é a relação entre um golpe e milhares de professores e outros servidores públicos que foram expurgados recentemente? Qualquer golpe é um insulto contra a democracia e quem quer que seja o responsável pelo complô precisa ser julgado e punido. Mas não é aceitável que se inicie uma caça às bruxas contra uma sociedade civil pacífica, não é certo fechar escolas e universidades bem-sucedidas, não é justo confiscar negócios de pessoas que são afiliadas a Fethullah Gülen ou ao Hizmet. É uma grande responsabilidade do povo turco e da sociedade internacional não permitir que esse genocídio social aconteça.
ÉPOCA – Fethullah Gülen afirma não ter nenhum envolvimento com a tentativa de golpe, ao passo que o presidente Erdogan afirma estar convicto de sua culpa. Qual sua visão sobre isso?
Bilici – O senhor Gülen disse que não teve nada a ver com o golpe. Mas já que Erdogan o acusa, Gülen disse que está pronto para que essas acusações sejam investigadas por uma comissão internacional, já que não existe estado de direito na Turquia hoje. Contudo, essa não é a primeira vez que Erdogan está acusando Gülen. Gülen é um alvo de Erdogan desde que, em dezembro de 2013, um grande escândalo de corrupção envolvendo o filho de Erdogan e seus ministros foi descoberto. Erdogan destruiu todo o Judiciário e o movimento Hizmet porque considerou que eles estavam por trás da investigação de corrupção. Normalmente, se há enormes acusações de corrupção sobre políticos, eles renunciam e são julgados. Mas na Turquia, aqueles que ousaram começar investigações de corrupção estão pagando um preço alto hoje. Promotores, juízes e policiais que estavam envolvidos na investigação estão ou na cadeia ou no exílio hoje.
ÉPOCA – Nesse contexto, o governo turco iniciou um processo de reaproximação com a Rússia. Isso terá algum impacto na situação interna do país?
Bilici – A Turquia era a estrela brilhante enquanto desenvolvia sua democracia até cinco anos atrás. Até então, mantinha boas relações com o Ocidente, com a Rússia e com o mundo muçulmano ao mesmo tempo. Recentemente, a Turquia escolheu um caminho semelhante ao de autocracias do Oriente Médio. Como resultado, não há estabilidade dentro do país, que não está numa boa posição internacionalmente. Conforme sua democracia e sua política externa vão ladeira abaixo, sua economia fica pior a cada dia que passa. É triste, mas esses são os tristes fatos sobre meu país hoje. É uma lástima que tanto as políticas bem-sucedidas de ontem e as políticas terríveis de hoje são produtos da mesma liderança do AKP.
ÉPOCA – O que o senhor antevê quanto ao futuro da Turquia e seu status político?
Bilici – Se a Turquia seguir nessa direção enfrentará cada vez mais desafios domestica e internacionalmente. Eu não estou muito otimista, mas vamos desejar e rezar para que o bom-senso predomine e a Turquia volte às políticas que fizeram dela a estrela da região e no mundo até cinco anos atrás. A Turquia mostrou que tem um grande potencial se políticas corretas forem postas em prática.
TERESA PEROSA
Fonte: epoca.globo.com