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A guerra de Erdogan contra o talento e o futuro do estado turco

A guerra de Erdogan contra o talento e o futuro do estado turco
outubro 12
16:22 2016

“100.000 pessoas foram demitidas de seus empregos na Turquia. A Turquia não é um país seguro. Há muita agitação lá”, dizia um bilhete que foi tirado de uma médica turca pela polícia.

A médica, que foi demitida e teve sua licença revogada na repressão pós-golpe massiva da Turquia, estava fugindo da Turquia em um barco para a Grécia. Por ela não falar inglês, ela mantinha um bilhete em sua bolsa para mostrar às autoridades gregas que está buscando refúgio. A fronteira grega-turca já há muito tempo tem sido uma rota de trânsito para refugiados sírios e também para migrantes de países empobrecidos tais como a Somália e o Afeganistão. Hoje, esses barcos estão repletos de professores e jornalistas dissidentes, que estão fugindo para salvarem suas vidas conforme a repressão sobre os críticos se amplia.

Pode parecer uma analogia apressada, mas não é menos dissimilar em caráter e natureza entre os expurgos massivos da Turquia e outros casos históricos similares. A limpeza dos nazistas de inimigos políticos e minorias étnicas nas décadas de 1930 a 1940, ou o grande terror de Stalin de 1936 a 1938, ou o expurgo islamista de rivais seculares e esquerdistas no rescaldo da revolução de 1979 no Irã possuem semelhanças marcantes com o expurgo em curso na Turquia.

No primeiro, ele pode não causar tanta ameaça ou dano para a Alemanha desenvolvida industrialmente, que, nas palavras dos filósofos da Escola de Frankfurt Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, epitomaram a grande premissa do Iluminismo Europeu: uma sociedade avançada racional e cientificamente. Mas em outros casos, os expurgos deixaram um impacto debilitante no aparato estatal na União Soviética, Irã e na Turquia de hoje.

Com a ascensão do fascismo na Alemanha, a liderança nazista havia realizado políticas a nível nacional para uma purificação social e racial e lançou expurgos massivos dentro do estado para fazer uma limpeza dos servidores públicos judeus. A geração de gênios da época, seja na literatura, arte, ciência política ou qualquer campo, não conseguiram se desviar de políticas avassaladoras que então se transformaram em um genocídio cataclísmico que viu milhões de pessoas mortas.

O que parece marcante é o fato que os nazistas focavam sistematicamente as pessoas talentosas de todas as estirpes e convicções políticas quando considerava eles como inimigos de seu regime político. Como Ian Kershaw demonstrou eloquentemente em sua biografia de Adolf Hitler, comunistas foram colocados em campos de concentração às centenas de milhares em 1933 logo após os nazistas virem ao poder. O povo roma, ciganos e alemães judeus tinham então se tornado nos próximos alvos em massa. Passo a passo, as políticas autoritárias se estenderam para incluírem outros grupos e minorias étnicas, e o povo judeu emergiu como o grupo que mais sofreu dos que foram sujeitos ao Holocausto.

O zelo antissemítico dos nazistas era tão feroz que eles nunca pensaram duas vezes antes de focarem o ataque nas pessoas mais talentosas, médicos, músicos, cientistas, arquitetos, que de outra forma poderiam muito bem contribuir para a sociedade.

A guerra e repressão políticas similares contra as pessoas qualificadas poderiam ser discernidas nos expurgos e terror stalinistas que forcaram nas elites do partido, artistas proeminentes, figuras culturais e membros respeitados da comunidade científica. O grande terror de Stalin também dizimou generais e oficiais experientes do exército soviético um pouco antes da Segunda Guerra Mundial no final da década de 1930. A paranoia do próprio Stalin até levou ele a lançar uma caçada global por seu arqui-inimigo, Leon Trotsky, um dos três pilares de liderança da Revolução Soviética, e a orquestrar o assassinato político de Trotsky no México em 1940. Escritores, artistas e outras elites nunca se sentiram confortáveis e seguras sob o olhar escrutinante do onipresente Irmão Mais Velho, um tema central no romance inovador de George Orwell, “1984”, que ofereceu um exame sombrio sobre as faces escuras de um estado e sociedade totalitários

A morte de Stalin em 1953 desencadeou um sentido de alívio entre as elites do partido conforme seu sucessor, Khrushchev, jurou parar com os assassinatos políticos e se comprometeu a estabelecer a confiança e a paz. Mesmo durante esse período os cientistas soviéticos continuaram a fugir do país. Para o embaraço e consternação dos sovietes, os atletas usavam os Jogos Olímpicos como uma oportunidade para buscarem asilo no país organizador ou em outro lugar, enquanto que o Muro de Berlim, um símbolo de uma Alemanha, e de fato da Europa, dividida, não conseguiu impedir que alemães orientais determinados escapassem para a Alemanha Ocidental, uma terra de prosperidade e liberdade, como era visto na época.

O Irã também se enveredou por essa rua perigosa. Antes da guerra Irã-Iraque, um expurgo massivo no exército iraniano – então um aliado dos EUA e um dos mais fortes da região – reduziu drasticamente o número de generais experientes. Acredita-se que esse expurgo foi um fator que levou Saddam Hussain à guerra contra o Irã.

E a guerra deu aos líderes religiosos a desculpa e ferramentas necessárias para solidificar o novo regime, suprimir críticos em potencial e reestruturar o estado todo a própria imagem e visão deles. O Irã tem agora uma diáspora considerável nos EUA, em que a maioria fugiu do regime teocrático islamista do país após a revolução de 1979. Ficou bem claro aos seculares e esquerdistas que seriam forçados a se ajustarem as necessidades do novo regime se tinham a intenção de ficar. Alguns ficaram, alguns não.

A Turquia está em um caminho similar agora. Mais de 100.000 servidores públicos foram expurgados. Ao menos 70.000 foram detidos e 32.000 presos desde o golpe fracassado de 15 de julho. O que tenha forçado médicos, executivos em qualquer sociedade, a arriscarem suas vidas em uma jornada perigosa através de um rio monitorado por soldados fortemente armados em ambos os lados na fronteira turca-grega merece atenção.

Tão imprudente foi a repressão do governo logo após o golpe que ele fechou 35 hospitais, 15 universidades, 1.043 escolas e colégios particulares, 1.229 associações e fundações, 19 sindicatos por afiliação a um movimento inspirado pelo clérigo baseado nos EUA Fethullah Gulen. Quando a decisão de fechar hospitais, incluindo um hospital armênio, saíram, muitas pessoas ficaram a se perguntar para entender a racionalidade por detrás dela. Por que hospitais? A pergunta, juntamente a dezenas de outras, passaram sem serem respondidas. Mas ela explica as raízes da aproximação irracional encrustada nas políticas do governo direcionadas a instituições ligadas a críticos. Até médicos não conseguem escapar da ira do governo do Presidente Recep Tayyip Erdogan. Tão infelizes e deploráveis estão as condições do mundo acadêmico, que há relatos de professores universitários tentando a sorte em jangadas, juntamente a refugiados, com destino às ilhas gregas.

O expurgo estava sendo preparado bem antes da tentativa de golpe, mas tomou uma forma massiva, sem precedentes em toda a história da República Turca. A escala e natureza do expurgo pós-golpe dá suspeita legítima aos críticos de que o Presidente Erdogan está somente atrás dos golpistas, mas de qualquer um que considere não-leal. Conforme o golpe estava se despedaçando, Erdogan descreveu o ocorrido como um “presente de Deus” para fazer uma limpeza no exército. O que se seguiu desde então provou mais uma vez que Erdogan é um homem de sua palavra quando lida com inimigos políticos e oponentes.

A natureza do expurgo da Turquia merece ser analisada. Sob o pretexto de ir atrás de gulenistas, o arqui-inimigo jurado de Erdogan, o governo demitiu servidores públicos e acadêmicos de todos os credos políticos. As autoridades turcas dispensaram cientistas, acadêmicos, médicos, funcionários do Ministério da Agricultura, empregados de administrações locais, governadores, prefeitos, policiais, juízes, promotores, militares, peritos financeiros, veterinários e professores em um expurgo massivo que afetou todas as instituições públicas. Ele demitiu uma porção significativa de pilotos da Força Aérea tanto que agora enfrenta uma escassez de pilotos experientes para pilotar seus caças se Acara entrar em guerra com algum país. Quase metade dos generais e almirantes foram dispensados do exército, 3.500 juízes e promotores demitidos, quase 50.000 professores perderam seus empregos e mais de 20.000 policiais, 30 governadores e dezenas de milhares de outros foram demitidos ou suspensos.

Um número significante deles está agora na cadeia. O governo até soltou 30.000 condenados para criar espaço para as prisões pós-golpe.

A natureza surreal da tragédia que atualmente se desenrola na Turquia parece parece vindicar a utopia horripilante retratada eloquentemente em “1984” de Orwell, um livro citado em qualquer artigo ou ensaio político que lide com o totalitarismo durante o século vinte. Por mais que seja diferente em extensão e grau, as similaridades não são menos marcantes e não mais chocantes dadas as condições. O medo e desconfiança sociais, a caça às bruxas a nível nacional envenenou as relações entre o povo, os servidores públicos, entre superiores e inferiores. Ele deixou um exército e polícia profundamente fraturados. Lealdade partidária substituída pelo mérito, e uma promoção depende da vontade de provar quanto alguém é leal ao presidente. Em um país em que baixar um aplicativo de celular pode pôr alguns na cadeia, como já aconteceu em milhares de casos, ninguém se sente seguro.

Enquanto que nenhum prazo pode ser estipulado para prever como esse saga do expurgo vai terminar na Turquia, uma coisa é certa: Uma vez que a poeira abaixar, as consequências devastadoras do expurgo vão se tornar claras e bem piores.

Abdullah Ayasun, jornalista freelance radicado em Boston

Fonte: www.huffingtonpost.com

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