Os intelectuais da Turquia se ajoelham a Erdogan
Em 27 de julho, apenas alguns minutos antes da hora do meu voo de Bruxelas para Newark decolar, um funcionário da United Airlines se aproximou e pediu para que eu deixasse o avião. Eu me senti humilhada pelas suposições implícitas dos passageiros que estavam perto de mim, mas eu não estava chocada: eu sabia que a Turquia estava cancelando os passaportes das pessoas para punir os que considerava como críticos de seu governo cada vez mais autoritário.
Lá em março, o governo tomou o controle do jornal de língua inglesa Today’s Zaman, onde eu era a chefe de redação. Eu tinha fugido de Istambul, minha cidade natal, para evitar ainda mais repercussões, mas o estado não estava satisfeito com forçar jornalistas como eu ao exílio.
Com meus planos de trabalhar como uma pesquisadora visitante na Universidade da Cidade de Nova Iorque aparentemente em ruínas, não consegui evitar que escorressem lágrimas pelo meu rosto conforme eu era escoltada até a delegacia do aeroporto. Eu descobri lá que meu passaporte tinha sido revogado dois dias antes, fazendo de mim um dos mais de 50.000 cidadãos turcos que tiveram seus documentos de viagem cancelados como parte de um expurgo que seguiu a tentativa de golpe em 15 de julho.
Algumas horas antes do meu voo, eu tinha acordado com uma mensagem do meu vizinho em Istambul dizendo que a polícia havia feito uma batida em meu apartamento. Dadas as prisões de colegas aprisionados na Turquia, eu sabia que era uma questão de “quando” em vez de “se”. Um mandato para a minha detenção foi emitido no mesmo dia. Meu vizinho em Istambul estava extremamente nervoso e me pediu que para deletar todas as nossas mensagens.
A polícia confiscou dois livros, eu soube mais tarde, um que era em inglês e tinha uma foto na capa com a palavra “golpe”. Nesses últimos dias, na Turquia, isso é “evidência” o suficiente para fazer você ser preso e acusado de atividade terrorista.
A tentativa de golpe foi deplorável e, apesar do enorme arrastão de prisões, não foi investigado adequadamente – no entanto, em questão de horas, o Presidente Recep Tayyip Erdogan chamou essa tentativa de “um presente de Deus”. Não é de se surpreender: o golpe lhe deu um pretexto perfeito para arrancar pela raiz qualquer um que não seja completamente leal a ele.
A Turquia me parece estar em um caminho irreversível que leva à ditadura. Assim que o Sr. Erdogan nomeou Fethullah Gulen, o clérigo muçulmano que vive em exílio autoimposto na Pensilvânia, como mandatário do golpe, a demonização do movimento Gulen saiu do controle. Políticos de todo o espectro aderiram à onda de rotular o movimento como Organização Terrorista Fethullah, ou FETO, apesar da ausência de qualquer prova confiável de atividade terrorista. A eles se juntaram numerosos comentaristas e colunistas de jornais, até aqueles que se descrevem como liberais, que sem criticarem adotaram e legitimaram esse rótulo sem evidências.
Graças ao estado de emergência na Turquia, é difícil obter informação confiável, mas de acordo com o Turkey Purge, um site que rastreia a extensa caça às bruxas, de acordo com a época em que este texto está sendo escrito, um total de 117 jornalistas estavam atrás das grades e 160 órgãos de mídia tinham sida fechados. Isso representa apenas uma fração das medidas repressivas. No total, mais de 100.000 pessoas foram suspensas ou demitidas de seus empregos o governo; quase 43.000 foram detidos e 23.770 presos. Até figuras públicas amadas por todos como o comediante Atalay Demirci e o famoso cantor Atilla Tas foram presos por seus aparentes laços com o movimento Gulen.
Eu perdi a fé na habilidade do público em questionar as afirmações incontestadas que ouvem do governo em emissoras como a CNN Turk. Mas minha maior decepção está com os intelectuais do país. Com algumas exceções, eles não tem a integridade básica para fazer alguma coisa a não ser repetir como papagaios as acusações que o Sr. Erdogan arremessa em seus oponentes.
O problema com esses intelectuais é que o mundo presta atenção a eles, e isso porque existem relativamente poucas pessoas na Turquia escrevendo em inglês. Muitos observadores estrangeiros presumem que informações vindas de secularistas, esquerdistas e os assim chamados liberais turcos ainda são confiáveis, talvez por causa do pressuposto de que seus estilos de vida ocidentalizados lhes deem também uma mentalidade ocidentalizada. Na realidade, os secularistas podem ser tão intolerantes e fanáticos como os islamistas políticos.
Veja esse exemplo: Quando o passaporte de Dilek Dundar foi revogado em 3 de setembro, houve um clamor nas mídias sociais, e com todo o direito, por causa dessa tentativa de punir eu marido, o jornalista esquerdista exilado Can Dundar. Essa foi a prática que o governo usou contra os simpatizantes de Gulen por meses, no entanto foi apenas quando alguém do gueto ideológico deles virou alvo que os secularistas da Turquia reagiram. Quando a polícia não encontrou um antigo editor-chefe do Zaman, Bulent Korucu, em casa, prenderam sua mulher. Mas isso praticamente não apareceu nas notícias.
Esperamos que déspotas criem inimigos, estrangeiros e domésticos, para assim reunirem a nação junto a eles. Mas o que dizer das elites medrosas da Turquia? Em 1º de setembro, o alto magistrado aplaudiu o Sr. Erdogan de pé em seu suntuoso palácio conforme o presidente se confirmava como o cabeça do legislativo, do executivo e do judiciário.
A Turquia é uma sociedade do preto no branco; não existem tons de cinza. Os intelectuais não são imunes a essa dicotomia. Em um clima desses, democratas genuínos – já em falta – mal podem se fazer ouvir.
Essa aplicação seletiva de direitos democráticos feita pelos intelectuais da Turquia só ajuda o Sr. Erdogan a consolidar seu poder. Em suas morais duplas, ele encontra uma aprovação implícita para seus expurgos. A Turquia está carente não apenas de instituições robustas que garantam um sistema de fiscalização e o estado de direito, mas também de uma massa crítica de cidadãos com a coragem e integridade de exigir essas coisas.
Consegui ficar na Bélgica, graças eu ter recebido residência temporária lá. E talvez por causa da resistência internacional ao cancelamento em massa de passaportes feito pela Turquia, a polícia belga posteriormente confirmou que o meu estava novamente válido. Ainda assim, vivo em um estado de incerteza, esperando encontrar um refúgio, como uma jornalista em exílio, em uma sociedade que abraça o estado de direito. Mas, conforme eu olho para a minha terra natal e o fracasso dos intelectuais da Turquia, acho difícil não me desesperar.
Sevgi Akarcesme
Fonte: www.nytimes.com