Glorificação do martírio produz criança terrorista suicida na Turquia
Em 20 de agosto, estourou uma notícia de que uma festa de casamento a céu aberto havia sofrido um atentado em Gaziantep, no sudeste da Turquia, na fronteira síria. O atentado deixou pelo menos 57 mortos e dezenas de feridos. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan informou à imprensa que o Estado Islâmico (EI ou ISIS) era o suspeito do atentado e que o homem-bomba era uma criança de 12-14 anos de idade. Erdogan disse também que as autoridades não tinham certeza se a criança tinha se explodido ou se a bomba havia sido ativada remotamente.
Um dia depois, contudo, o primeiro-ministro turco Binali Yildirim retirou essa informação, alegando que o governo não conseguira identificar o homem-bomba, e que portanto ele não conseguiria nem confirmar nem negar que o perpetrador era menor de idade.
Em quase todos os outros incidentes com homens-bomba, as autoridades turcas conseguiram confirmar e publicar a identidade do homem-bomba dentro dos dois primeiros dias. Contudo, desta vez, após vários dias, ainda não temos o nome ou os nomes de quem foi responsável. Inicialmente, pessoas locais contaram à imprensa que nessa pequena vizinhança todos se conhecem. Disseram que dois homens e uma criança entraram em um mercadinho e compraram uma garrafa d’água para o menino. Dois dias depois, relata-se que uma mulher de véu e um homem fizeram um menino empurrar um carrinho de bebê carregado de bombas para o meio da multidão do casamento.
A situação fica ainda mais complicada conforme tentamos entender o cenário. Primeiro, essa festa foi um prelúdio do casamento, chamado de noite da henna. Ela é similar a um chá de cozinha, em que a maioria dos convidados é de mulheres e crianças. Por isso a maioria das vítimas era de crianças e mulheres. As festividades estavam sendo realizadas na rua, que é algo tradicional e mais econômico em bairros suburbanos. Acredita-se que o Estado Islâmico atacou essa noite da henna devido à maioria de mulheres e crianças curdas na celebração. Essas são as seções mais vulneráveis da sociedade, alvos igualmente comuns do Estado Islâmico em outras partes da região. O Estado Islâmico não reivindicou o atentado, mas essa tem sido praticamente a norma para suas operações na Turquia.
O público turco começou a se perguntar sobre a terrível possibilidade de que crianças estavam agora executando missões para aterrorizar as pessoas. O possível choque por essa nova face do terrorismo, contudo, se desgastou rapidamente. A forma como a Turquia se acostumou tanto com a ideia de crianças agindo como homens-bomba pode ser explicada tanto no nível regional quanto doméstico.
O público turco ficou perturbado mas não abalado pela notícia da criança terrorista suicida, principalmente porque na última década isso se transformou no novo normal para a região. “Qualquer um e todos podem ser usados, até um corpo”, disse um tenente-general das Forças Armadas Turcas, que pediu para permanecer anônimo. O general ainda disse: “Estamos calejados com as notícias do Boko Haram, al-Qaeda, Estado Islâmico e outros. A Turquia já teve uma mulher bomba e sabe de crianças recrutadas pelo Estado Islâmico e também as recrutadas pelo PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão]”. Portanto o aspecto regional gerou um tipo de escudo para os turcos contra o forte efeito do choque.
Em seguida estão fatores domésticos que são de fato mais fortes do que os regionais. A Turquia tem passado por uma prolongada sessão de nacionalismo hipervalorizado e da glorificação do martírio. Dado que a Turquia tem estado em guerra com o PKK pelas últimas quatro décadas e com o Estado Islâmico desde o ano passado, pode-se esperar que isso seja normal. Contudo, a glorificação do martírio tem sido encorajada e estimulada por uma década além das razões de combater o terrorismo. Essa propaganda exagerada está afetando particularmente os jovens.
De fato, Erdogan e o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) gostaram da seguinte declaração retórica: “Embarcamos nessa jornada com nossas mortalhas”, tentando sinalizar para seu público que estão dispostos a morrer pela sua causa. Por mais que soe patriótico, quando essas palavras são colocadas lado a lado a homens envoltos em panos brancos em manifestações do AKP, isso poderia ter um impacto terrível nas crianças e adolescentes.
Um funcionário da saúde familiar, que trabalha para uma municipalidade do AKP em Istambul, contou ao Al-Monitor: “Testemunhamos crianças entre as idades de 4 e 14 frequentemente em duas categorias: Ou agem com extrema coragem e agressividade de maneiras que poderiam machucá-los fisicamente e as pessoas a sua volta, ou estão no outro lado do espectro com uma sincera fobia, que chamamos de ansiedade causada pela morte. Uma criança explicou, por exemplo, ‘Acordo sufocando’. Mais tarde, descobrimos que ele tinha medo que seus pais matariam ele para que assim se tornasse um mártir”.
A profundidade dos medos e ansiedade das crianças podem ser melhor compreendidos depois de se ver a intensa indoutrinação da juventude turca através das publicações do Diretório dos Assuntos Religiosos (Diyanet). Por exemplo, em uma publicação da Diyanet em abril, havia três distintas caricaturas controversas.
Na primeira caricatura, um pré-adolescente pergunta a seu pai: “Você gostaria de ser um mártir, papai?” Seu pai responde: “Que bênção é ser um mártir. Quem não gostaria disso, quem não gostaria de alcançar o paraíso?” Na próxima, uma menina faz uma saudação de soldado e diz: “Gostaria de poder ser um mártir”. Seu irmão responde: “As meninas não podem se juntar ao exército”, mas a mãe intervém e diz: “Se você quer tanto assim, minha filhinha, Deus vai te conceder esse desejo”. Na última, um menino diz: “Eles devem ter sofrido tanto antes de morrerem como mártires, certo, pai?” O pai responde: “Filho, os mártires não sofrem da forma que você pensa”. Ao lado de cada um desses desenhos há uma citação do Profeta Muhammad.
A Televisão Estatal Turca (TRT) também tem feito a sua parte. Em novembro de 2015, a TRT pôs no ar um documentário que alegava documentar a guerra civil síria. Em um esforço para retratar o presidente sírio Bashar al-Assad como o mal contra o Islã responsável por todas as atrocidades, os produtores entrevistaram vários refugiados sírios. Um deles foi uma menina que havia perdido seu pai na guerra. O entrevistador perguntou a ela: “O que você faria se tivesse que lutar?” Ela respondeu: “Eu me explodiria em um posto de controle”. Os partidos de oposição turcos fizeram dessa seção do programa o foco de um inquérito parlamentar em março, e depois do atentado a bomba em Gaziantep, a imagem da menina apareceu na mídia social com uma dura crítica sobre a utilização de dinheiro do contribuinte para advogar pelo autossacrifício.
É bem icônico que em um país em que o Pokémon foi proibido devido aos seus efeitos prejudiciais nas crianças, exista agora milhares de escolas imam hatip onde as crianças são indoutrinadas ao caminharem para suas mortes sem medo. Existem vários vídeos de peças teatrais escolares ou outras atividades nessas escolas em que as crianças contam e marcham declarando o desejo de serem mártires.
Após a tentativa de golpe, nada poderia abater o zelo pelo martírio na Turquia. Em cada oportunidade possível, Erdogan e seus homens falaram às pessoas que eles gostarias de ser mártires e que até tem inveja daqueles que alcançaram essa condição, dizendo também que cada centímetro de solo turco deve ser lavado com o sangue dos mártires. Ao observar toda essa retórica apaixonada combinada com um sistema de educação formal que foca no autossacrifício, não se pode evitar mas ter medo de suas possíveis consequências para o futuro da Turquia.
Pinar Tremblay
Fonte: www.al-monitor.com