Erdogan quer islamizar a Turquia, diz jornalista
A Turquia experimentou dois golpes em julho. O primeiro no dia 15, de uma pequena facção de militares, que fracassou horas depois de ser deflagrado. Porém, no dia seguinte, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, iniciou o seu golpe, com sucesso. Agora, ele está se aproveitando da repressão aos participantes e supostos simpatizantes do primeiro golpe para eliminar de vez as vozes de oposição e concentrar o poder. Essa é a avaliação do jornalista turco Kamil Ergin, que vive há dez anos no Brasil e é membro do movimento Hizmet, do clérigo Fethullah Gülen, apontado por Erdogan como mentor da tentativa de golpe.
Gülen, que vive em autoexílio nos EUA, e seu movimento negam ligação com o golpe. A ampliação das prisões e o fechamento de escolas, universidades, sindicatos, hospitais e veículos de comunicação sugere que repressão não é dirigida apenas a esse grupo, mas atinge também minorias como os alauítas (um ramo minoritário do xiismo), os curdos e representantes de todo o espectro político.
“Eles [o grupo de Erdogan] estão usando essa carta de vítima, acusando Gülen sem provas”, diz Ergin. “Quando você vê a lista completa, é realmente uma limpeza em massa, de grupos que de alguma maneira não declararam obediência total a Erdogan.”
O expurgo promovido pelo governo turco atinge dezena de milhares de pessoas, entre militares, juízes, policiais, professores, reitores de universidades e funcionários públicos. Na semana passada a repressão foi estendida a executivos e funcionários de empresas do setor privado e financeiro.
Para Ergin, Erdogan promove uma limpeza para se tornar um líder sem oposição, a exemplo de Vladimir Putin (Rússia) e Xi Jinping (China), com os quais promove um alinhamento, num momento que crescem os atritos turcos com a União Europeia (UE), EUA e a Otan (a aliança militar ocidental, da qual a Turquia faz parte).
Ergin alerta que no curto prazo a Turquia não deve retornar às normas democráticas. Após o golpe, o governo decretou três meses de Estado de emergência e anunciou a suspensão da Convenção Europeia de Direitos Humanos. “Hoje eles estão fazendo toda a limpeza dizendo que estamos em uma situação de emergência. Mas certamente, quando acabar o Estado de emergência, eles não vão voltar para as normas democrática.”
Para ele, a Turquia corre o risco de passar por uma revolução islâmica, a exemplo da ocorrida em 1979 no Irã. “Na Turquia, a linha política representada pelo partido de Erdogan tem esse entendimento de estar no poder como muçulmanos para mudar, para islamizar o país”, diz. A ideologia do Estado “foi mudada de islamista secular para islamista nacional”.
Na quinta-feira, Erdogan declarou ao Parlamento turco que é preciso aprovar uma emenda constitucional para colocar as Forças Armadas e a agência nacional de inteligência sobre o controle da Presidência. “Agora que ele vai montar um Exército do Califado, ou seja, o Exército na Turquia vai ser reconstruído com uma linha totalmente fiel e leal do Erdogan. Ele se vê como um califa do mundo religioso, do mundo islâmico”, diz Ergin, acrescentando que a mídia pró-governo costuma se referir a ele como líder religioso também.
Ergin alerta que o aumento da perseguição poderá gerar uma onda de migração da população turca, num primeiro momento da base intelectual. Para impedir a saída deles, cinco dias após a tentativa de golpe Erdogan proibiu os acadêmicos de sair da Turquia e ordenou o retorno imediato de todos os que estavam no exterior. Segundo Ergin, 13 mil passaportes foram cancelados pelo governo.
“Hoje não há mais liberdade de expressão, as pessoas não podem criticar. Se não for aliado, vai ser perseguido.” Essa perseguição, segundo Ergin, inclui a orientação do governo para que as pessoas não comprem mercadorias, aluguem casas ou contratem oposicionistas. “As pessoas começaram a pichar as portas, colocar cartazes com os dizeres ‘aqui não se aceitam simpatizantes do Gülen ou opositores do Erdogan'”, disse.
“Isso é perigoso, a Turquia viveu isso nos anos 1970, quando houve um golpe. Na época foram tomados bens de grupos não muçulmanos, como armênios e judeus. Hoje está acontecendo a mesma coisa.”
Mesmo vivendo fora da Turquia, Ergin se sente atingido pela onda de repressão. Ele não consegue contato com sua família e teme ser incluído numa lista futura do governo por ser membro do Hizmet.
Ele conta que entrou para o movimento por meio da rede de escolas e de cursos, que o ajudaram a sair de sua pequena cidade, Afyon, e a ingressar numa faculdade. Ele é formado em Letras e veio ao Brasil para dar aulas de inglês na unidade de Santo Amaro (São Paulo) do Colégio Belo Futuro Internacional, que faz parte da rede Hizmet.
Depois de cinco anos no país, ele começou a escrever para o jornal “Zaman” (“Tempo”), ligado ao Hizmet. A colaboração terminou em março, depois que o governo tomou a sede do jornal e mudou a sua direção. “Eles me enviaram um comunicado dizendo que gostariam de continuar com os correspondentes no exterior, mas deixaram claro que o jornal tinha nova linha editorial, pró-governo.”
Por Suzi Katzumata
Silvia Zamboni/Valor