Crise na Turquia expõe velha disputa
Para especialista, grupos islâmicos rivais voltam à velha disputa pelo poder enquanto expurgo é realizado pelo presidente Erdogan
A tentativa de golpe na Turquia e o expurgo promovido pelo presidente Recep Tayyip Erdogan deixam evidente, mais uma vez, a disputa pelo poder entre grupos islâmicos de diferentes linhas de pensamento e abre espaço para outros movimentos. Horas após anunciar que havia contido o golpe, o governo acusou o clérigo Fethullah Gulen de ter orquestrado a tentativa de tomar o poder; o grupo dele, o Hizmet, nega e acusa Erdogan de “limpar” o país de seus opositores.
Mas a relação entre os que hoje trocam acusações não foi sempre de embate, pelo contrário. Até 2013, os dois grupos eram aliados – mesmo com ideologias distintas – e dividiam o poder na Turquia. “Durante os anos 2000, os grupos com visões políticas do Islã rivais Milli Gorus e Hizmet formaram uma aliança contra os militares secularistas, que tradicionalmente controlavam a política. A aliança foi apoiada pela União Europeia e pelos Estados Unidos”, explica o professor de Estudos da Turquia Moderna na Universidade de Graz, na Áustria, Karabekir Akkoyunlu.
O movimento Milli Gorus (Visão Nacional) é a ramificação adotada por Erdogan e, segundo Akkoyunlu, tem uma visão antiocidental e contra a ideologia secular. Esse ramo nasceu de partidos políticos islâmicos fundados na década de 60 por Necmettin Erbakan – premiê em 1996 e destituído um ano depois por um golpe militar. Erdogan integrava o partido de Erbakan, Refah, antes de fundar o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), em 2001.
O Hizmet, atualmente presente em diversos países e inspirado em Gulen, surgiu da ramificação Nurcu, que significa “seguidor de Said-i Nursi”, um teólogo de ascendência curda proeminente entre os anos 30 e 50. Nursi, segundo o professor, defendia a adaptação do Islã ao mundo moderno, a participação não ostensiva na política e a realização de caridade.
Acusações. Integrantes do Hizmet alegam que o governo está promovendo uma “caça às bruxas” desde 2013, após acusações de corrupção contra Erdogan, e agora encontrou uma justificativa para ampliá-la. “Quando surgiu uma investigação contra ministros e filhos de Erdogan, o presidente começou a culpar o movimento. A partir daquele momento, mudaram as atitudes democráticas por autoritárias”, diz o jornalista turco que vive no Brasil e é integrante do movimento Kamil Ergin.
O governo turco rebate dizendo ter provas do envolvimento de Gulen na preparação do golpe e ressalta que não houve uma caça às bruxas no passado. “Temos problemas na Turquia, com a Justiça e a Constituição, mas após as acusações de 2013 o governo começou um trabalho de inteligência para saber quem era do movimento (Hizmet) e criou listas das pessoas que ocupavam cada cargo”, afirmou ao Estado o cônsul da Turquia em São Paulo, Mehmet Ozgun Arman, justificando como logo após a tentativa de golpe, o governo já possuía uma lista com nomes para o expurgo.
“Gulenistas providenciaram ao AKP profissionais qualificados na polícia e no Judiciário, na academia e na mídia. Em troca, sucessivos governos do AKP providenciaram aos gulenistas a oportunidade de expandir sua rede de trabalho na Turquia e no mundo. Erdogan e Gulen eram muito próximos até que se engajaram em uma luta pelo poder”, afirma o professor Akkoyunlu.
Segundo ele, é possível ter havido o envolvimento do Hizmet na tentativa de golpe, mas desde a separação entre o grupo e o AKP, Erdogan tenta “remover os pró-Gulen do governo”. O que já havia ocorrido no Judiciário e na polícia ocorreria nas Forças Armadas em agosto. “Parece que esses oficiais resolveram agir antes de serem removidos. O que ainda não sabemos é se eles agiram sozinhos, até que ponto a operação era hierárquica e se Gulen pessoalmente estava sabendo ou envolvido”, explica Akkoyunlu.
Ascensões. O professor lembra que boa parte dos presos até agora acusados pela tentativa de golpe é de soldados promovidos a posições de alto nível desde 2011, “momento em que o AKP realizava um expurgo de oficiais kemalistas laicos”.
Os kemalistas seguem os princípios de Mustafa Kemal Ataturk, fundador da República turca, e dominavam áreas militar, judiciária e de relações exteriores até meados dos anos 2000. Sob a denominação de “guardiães da república secular”, eles intervieram na política em golpes em 1960, 1971, 1980 e 1997.
Durante esses anos, os kemalistas eram a oposição a ser combatida na Turquia e a aliança entre o AKP e os gulenistas foi reforçada. “Entre 2008 e 2009, Gulen colaborava com o governo para atacar o Exército kemalista e 1/3 dos oficiais se tornaram gulenistas, mas depois Gulen quis mais poder”, argumenta o cônsul Ozgun.
O professor Akkoyunlu sugere que a nova situação na Turquia pode trazer o grupo secular de volta ao poder. “Após o rompimento com Gulen, Erdogan revogou sentenças contra os kemalistas e muitos oficiais ganharam liberdade. Ironicamente, alguns deles podem voltar a cargos militares para ocupar as posições deixadas pelos gulenistas.”