Democracia turca perdeu duas vezes
O fracasso de um golpe militar nem sempre é uma festa para a democracia. Prova-o a Turquia durante e após a fracassada tentativa de golpe da sexta-feira (15).
O melhor resumo está em texto para o Guardian de Alev Scott, jornalista e professora de Latim da Universidade do Bósforo: “Esse golpe foi o equivalente a uma esposa infeliz sendo raptada por um amante desorientado e incompetente. Ela —os 50% dos turcos que gostariam de ver Erdogan [o presidente Recep Tayyp Erdogan] fora do poder pelo voto— nunca pediu tal resgate. Afinal, um divórcio civilizado é uma coisa, mas ninguém de fato quer um retorno aos métodos medievais do golpe de 1980” (um dos sete que infelicitaram a Turquia na segunda metade do século 20).
Pois é, se a tentativa de golpe arranhou a estabilidade de que a Turquia vinha gozando, o pós-golpe está se revelando um endurecimento do regime que vai além da natural e justificada perseguição aos golpistas.
É uma opinião virtualmente unânime entre os analistas, como disse à FolhaSoner Cagaptay, diretor do Programa de Pesquisa sobre a Turquia do Instituto Washington para Política do Oriente Próximo: “Erdogan não só irá atrás legitimamente dos golpistas, mas também atacará ainda mais os dissidentes na medida em que a oposição a ele será, infelizmente, comparada a conspirar para o golpe. Como resultado do golpe, será mais difícil opor-se a ele democraticamente”.
Mais crítico é Sahin Alpay, pesquisador da Universidade Bahcesehir e um dos colunistas expulsos do jornal “Zaman”, o de maior circulação na Turquia até que o governo Erdogan interveio (e acabou por fechar): “Opor-se a um golpe contra o governo não quer dizer, em absoluto, defender a democracia na Turquia, uma vez que ela expirou faz tempo”, disse à Folha.
Reforça Ben Wolford, do blogue “Latterly”, que se propõe a ser um novo olhar sobre a cobertura jornalística: “Vimos um golpe em tempo real. Agora, veja democracia, livre expressão e direitos civis e humanos erodirem-se em tempo real”.
De fato, a onda de prisões e demissões, especialmente de policiais, na esteira do golpe parece indicar que se está indo além dos limites. Ou, como prefere Burak Kadercan, professor-assistente de Estratégia e Política do Colégio Naval norte-americano, “a tentativa de golpe e sua consequência imediata sugerem, em termos nada incertos, que entramos em uma nova fase na política turca. Benvindo ao Inverno Turco. E ele está apenas começando”.
É um começo imponente: além dos 6 mil militares presos, foram afastados de suas funções 2.745 juízes e procuradores, embora não tenha havido envolvimento direto e imediato do Poder Judiciário no dia do golpe.
Acontece que a teoria oficial é a de que o golpe foi orquestrado pelo movimento “gulenista”, considerado terrorista pelo governo Erdogan e liderado pelo clérigo islâmico Fetullah Gulen, auto-exilado nos Estados Unidos.
Não é a primeira vez que Erdogan acusa Gülen de conspirar para afastá-lo do poder: em 2013, na esteira de acusações de corrupção contra o círculo íntimo do então primeiro-ministro, Gulen também foi acusado de usar as acusações como instrumento para derrubar Erdogan.
Os dois, aliás, que haviam sido aliados muito próximos nos 10 anos anteriores, romperam exatamente por causa desse episódio. O rompimento se acentuou quando o governo reprimiu violentamente protestos da sociedade civil contra modificações no Parque Gezi, importante centro de lazer no centro de Istambul.
Diz Fatih Ceran, porta-voz gulenista: “Nós havíamos respaldado Erdogan e o AKP [Partido Justiça e Desenvolvimento] quando se tratava de subtrair o poder aos militares para entregá-lo à sociedade civil. Mas nos recusamos a aceitar soluções anti-democráticas. O Hizmet [o movimento que Gulen lidera, presente em 180 países e considerado uma espécie de Opus Dei do islamismo moderador] é demasiado liberal e independente aos olhos de Erdogan”.
Com esses antecedentes, é razoável acreditar que, se gulenistas de fato participaram da tentativa do golpe, o movimento em si não deve ter sido o inspirador nem o responsável por ele.
A sequência de fatos, aliás, reforça essa suposição: a primeira informação oficial de que o gulenismo era o responsável surgiu na agência Anadolu à 00:05 do sábado, meia hora antes de que um promotor abrisse a primeira investigação sobre o movimento golpista.
Como é possível acusar alguém antes mesmo de se abrir uma investigação?
E só à 01:39 foram presos os primeiros soldados, que poderiam confirmar quem era o organizador do golpe.
Fica claro que a acusação a Gulen foi um movimento reflexo do grupo de Erdogan.
Para efeitos práticos, esses fatos contam menos do que a disposição de Erdogan de perseguir ferozmente os gulenistas, o que, de resto, já vinha fazendo.
Diz, por exemplo, Burak Kadercan: “Erdogan usará o mote ‘seguidores de Fetullah Gulen’ como narrativa para refazer à sua imagem os militares, o Judiciário, a educação superior, a burocracia, a mídia e até a mídia social”.
Não há, pois, muito o que festejar com a derrota do golpe, de fato uma boa notícia.