Contadores de histórias – no Brasil e na Turquia
Repórteres são contadores de histórias. No Brasil atual nem sempre as histórias são alegres ou edificantes. Algumas delas formam verdadeiras séries, e poderiam ter títulos de folhetins. “O Brasil contra o vírus zyka”, “A crise econômica que flagela os pobres”, A roubalheira na Petrobrás”. ÉPOCA teve sua dose de protagonismo em todos esses assuntos – ao relatar, por exemplo, pagamentos de propinas para diferentes partidos da aliança do governo, como PT e PMDB, no âmbito do escândalo do petrolão. ÉPOCA também foi a primeira revista a noticiar uma das várias investigações sobre o ex-presidente Lula – por tráfico internacional de influência, em abril do ano passado. Vários desses casos foram parar na capa da versão impressa da revista.
É natural que os poderosos se sintam incomodados com as más notícias sobre seus partidos ou governos. É natural que reclamem. No início dos anos 1990, a imprensa noticiou a briga entre irmãos que sacramentou o calvário do ex-presidente Fernando Collor – e foi acusada por governistas de invasão de privacidade e de publicar boatos som confirmação. Durante a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, a imprensa noticiou a briga entre as diversas facções do governo. No recém-lançado Diários da Presidência, Fernando Henrique critica os jornais e as revistas por se concentrar, segundo ele, em “intrigas palacianas”. Nas últimas semanas, foi a vez de Lula reclamar da imprensa, que vem noticiando as diversas investigações a respeito de sua proximidade com os empreiteiros do petrolão.
O eletrizante Spotlight, agraciado com o Oscar de Melhor Filme neste ano, mostra com clareza o incômodo dos poderosos com os contadores de histórias. O poderoso da vez era o bispo de Boston, exasperado com a revelação dos escândalos de pedofilia da Igreja Católica. Uma turma de jornalistas jovens e idealistas persiste na apuração do caso, sem se intimidar – e o resultado é uma cobertura histórica e premiadíssima. Tocou uma geração de jornalistas também jovens e idealistas a cobertura do escândalo do petrolão, em curso no Brasil. Como os repórteres da equipe Spotlight – uma espécie de tropa de elite do jornal americano Boston Globe –, tais repórteres enfrentam toda sorte de pressões, incluindo discursos desqualificastes dos poderosos de plantão, campanhas nas redes sociais e, em casos extremos, até episódios de violência, como os que se verificaram contra profissionais de televisão na semana passada. Como os repórteres da equipe Spotlight, eles não se intimidam. O resultado é uma cobertura ampla, no interesse do leitor, de telejornais, site, emissoras de rádio – e jornais e revistas como a que você tem em mãos.
Na semana passada, o jornal turco Zaman estampou manchetes apoiando o presidente Recep Tayyip Erdogan. Os leitores ficaram surpresos – o Zaman sempre foi bastante crítico às políticas de Erdogan. Logo depois se soube o que ocorrera. O Zaman fora colocado sob tutela judicial, com seus escritórios invadidos pela polícia. A imprensa, por sua própria missão de fiscalizar o poder, incomoda os poderosos. Em regimes autoritários, esse incômodo se traduz em atos de força, como o que ocorreu na Turquia. Em democracias tal arbitrariedade é impensável. É assim nos Estados Unidos, onde foi feito o filme Spotlight. É assim no Brasil do petrolão. Os poderosos reclamam, mas os contadores de histórias continuam a fazer seu trabalho – narrar os casos que precisam ser narrados, mesmo que não sejam edificantes, mesmo que desagradem a empresários, deputados, senadores, presidentes e ex-presidentes. Para a democracia, é essencial que seja assim.
João Gabriel de Lima – Diretor de Redação
Fonte: Revista ÉPOCA