Sírios deslocados para fora de Istambul e para fora da Turquia. São mesmo regressos voluntários?
Os sírios que não se registaram na cidade de Istambul como requerentes de asilo estão a enfrentar deslocações forçadas para fora da cidade. Em novembro saíram mais de 6.000 pessoas e este fim de semana quase 100 mil. Outros casos são ainda mais graves: há sírios que estão a ser obrigados a regressar a um país instável e violento, denunciam as organizações não-governamentais
O modelo de redistribuição demográfica não é novo nem é segredo. Cerca de 97 mil refugiados sírios não registados junto das autoridades locais foram retirados da cidade de Istambul com direção a parte incerta – decisão que está a ser fortemente contestada pelas organizações de ajuda humanitária e de direitos humanos.
Quem confirmou os números foi o governador da cidade, Ali Yerlikaya, citado pela agência turca de notícias Anadolu. Já em novembro mais de seis mil pessoas foram recolocadas noutros sítios na periferia da cidade. Esta medida visa enviar os sírios para as cidades onde primeiramente se registaram ao chegarem ao país e pode forçar a deslocação de quase 300 mil pessoas. Alguns foram levados para campos de refugiados fora da cidade mas há suspeitas de que outros estejam a ser deslocalizados para zonas mais perigosas, incluindo zonas de conflito na fronteira ou mesmo na própria Síria. Yerlikaya adiantou também que, em 2019, outros 37.582 “migrantes irregulares” tinham sido retirados da cidade.
Desde julho do ano passado que os migrantes estão a ser retirados da cidade porque a pressão dos moradores sobre a classe política tornou-se demasiado pesada. Segundo Ali Yerlikaya, estas pessoas estão a ser enviadas para campos de refugiados mas Gerry Simpson, subdiretor da divisão de Crise e Conflito da Human Rights Watch, acredita que alguns sírios estão a regressar ao seu país sem terem pedido para o fazer.
É possível aos refugiados sírios pedirem o repatriamento voluntário mas esse não parece ser o desejo da maioria. Depois de entrevistar duas dezenas de sírios deslocados, Simpson descreveu várias situações de maus-tratos por parte das autoridades de forma a forçarem estas pessoas a assinar declarações de remoção voluntária. “Fui deportado com cerca de 35 sírios num autocarro grande. Algemaram-nos e bateram-nos com cassetetes quando alguns pediram para ir à casa de banho ou buscar água. Todos conversamos uns com o outros e ninguém queria voltar para a Síria”, é dos relatos recolhidos pelo responsável da Human Rights Watch.
Em outubro, a Amnistia Internacional denunciou outros 20 casos de sírios entregues às autoridades sírias na fronteira entre a Turquia e a Síria, especialmente na região de Idlib, onde está concentrada a última força de oposição a Bashar al-Assad (presidente da Síria) e que por isso é permanentemente bombardeada por forças sírias e russas, aliadas de al-Assad. Idlib não é, sob nenhuma definição, um local para o qual se possam enviar pessoas devido ao risco existente para as suas vidas.
O governo continua a negar que estes movimentos possam ser classificados como repatriações forçadas. No final de julho, o ministro do Interior da Turquia, Süleyman Soylu, negou que a Turquia “deportasse” sírios. “Qualquer pessoa que voluntariamente queira voltar para a Síria pode assinar formulários de devolução voluntária, permitindo que retornem a áreas seguras”, disse. Quais são as áreas seguras de um país acusado de prender e torturar todos os que regressam sob suspeita de terem feito parte dos rebeldes, não especificou.
Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Turquia, igualmente citado no documento da Human Rights Watch, disse no final de outubro que as alegações de que os sírios foram deportados e abusados eram “falsas e imaginárias” e que a Turquia está “a implantar cuidadosamente a sua política de ‘não repulsão’ ou refoulement (referindo-se à proibição internacional de retornar alguém a um lugar onde enfrentariam um risco real de perseguição, tortura ou outros maus-tratos ou ameaça à vida) “.
A 24 de setembro, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, disse à Assembleia Geral da ONU que a Turquia estava a pensar em estabelecer uma zona segura em territórios anteriormente mantidos pela Administração Autónoma liderada pelos curdos no nordeste da Síria, para a qual entre um a dois milhões de refugiados sírios poderiam ser devolvidos. Estas zonas tinham sido, de facto, quase santuários para quem fugiu, durante mais de meia década, da guerra mais a sul mas em outubro de 2019, Erdogan invadiu território que os curdos consideram seu e criou uma “faixa” a que chamou “zona de segurança” para evitar que as milícias curdas penetrem em solo turco e conduzam ataques terroristas pela independência de um Estado curdo. Essa também já não é uma “zona segura” para onde seja legal ou moralmente justificável enviar pessoas.