Uma guerra comercial dos EUA com a Turquia por um pastor pouco conhecido? Não acredite em nada disso
É preciso um toque de gênio para se amolecer o coração do velho coitado Recep Tayyip Erdogan. Aqueles entre nós que sempre acreditaram que Erdogan é um pouquinho desajustado devem ainda estar chocados com um presidente americano infinitamente mais louco do que a variedade turca está tentando empobrecer o segundo maior aliado da OTAN. Verdade, Erdogan trancafiou mais de 50.000 turcos — incluindo um pastor americano, do qual falaremos mais depois — depois da tentativa de golpe contra ele dois anos atrás, mas o presidente/marechal do Egito, Abdel Fattah al-Sisi, não quebrou esse recorde ao bater em 60.000 supostos islamistas nas prisões de seu próprio país? E quanto aos enforcamentos em massa de Haider al-Abadi no Iraque? Ou aquela sórdida pequena crucificação pós-morte na Arábia Saudita nesta semana, sem mencionar aquela horrenda guerra na Iêmen, onde parece que crianças são mortas o tempo todo? Ou o hábito israelense de atirar em vários palestinos desarmados em Gaza? Ou aquele pateta na Coreia do Norte que faz apelo ao senso de humor de Trump?
Se o sobrenome de Erdogan significa “falcão corajoso” em inglês, o Sultão de Istambul certamente teve suas asas aparadas. Ou assim se supõe que devamos acreditar. Trump, que não está nem aí para quantos inocentes sejam encarcerados ou mortos no mundo, está repentinamente tentando neutralizar a Turquia — e tudo porque o Pastor Andrew Brunson permanece sob prisão domiciliar lá por supostamente apoiar o complô do golpe supostamente organizado pelo antigo colega de Erdogan, o suposto mesmérico imã Mohamed Fethullah Gulen, atualmente residindo no próprio país de Trump.
Não acredito em nenhuma palavra disso. Trump fez pouco alarde sobre o cativeiro de Brunson por muitos meses. Levou quase um ano e meio para ele dar um chilique por causa do bom homem de família e missionário cristão em Esmirna, cujas principais características parecem ser nada além de saudáveis: churrascos, piqueniques, natação, filmes e jogos de tabuleiro à noite, para citar sua irmã Beth: “a típica família americana apesar de viverem tão longe”. Os cristãos evangélicos americanos ficaram indignados com a prisão desse homem de Deus — o cristianismo estava sob julgamento, é claro — e o presidente favorito deles finalmente tuitou que “esse inocente homem de fé deve ser solto imediatamente”.
E então aconteceu que a ira de Trump foi visitada pelo presidente muçulmano que trancafiou um homem que estava apenas fazendo o trabalho de Deus na confortável cidade costeira de Esmirna. Tarifas dos EUA dobradas sobre o aço e alumínio ajudaram a quebrar a lira turca, que perdeu 45% de seu valor neste ano, apesar de que Erdogan pode também ser culpado por causa de sua recusa de aumentar as taxas de juros contra a inflação. Mas vamos ser razoáveis. Tudo isso é por causa de um pastor presbiteriano?
Não. Pois eis a lista real dos crimes de Erdogan. Ele está comprando o sistema russo de mísseis S-400 para a Turquia. Ele se recusa a aceitar o apoio dos EUA aos seus aliados curdos do YPG. Ele permitiu que militantes islamistas invadissem o Síria através da fronteira com a Turquia junto com um monte de armas, morteiros e mísseis — ao que Washington não possuía objeções na época já que os EUA estava tentando derrubar o antigo amigo de Erdogan, Bashar al-Assad, de seu galho. Então, depois de abater uma aeronave russa ao longo da fronteira síria em novembro de 2015 — pelo qual ele foi imediatamente boicotado por Moscou — Erdogan aninhou-se em Putin. Foi assim que os russos e os iranianos que primeiro alertaram Erdogan o iminente “golpe de Gulen” contra ele em julho de 2016. Eles estiveram escutando o tráfico interno de rádio dos militares turcos — e deram a dica ao Sultão de Istambul.
E agora Erdogan está ajudando o Irã a se desviar das sanções dos EUA que foram impostas depois que Trump flagrantemente rasgou o acordo nuclear de 2015, e — em uma decisão que demonstra a resposta covarde dos próprios conglomerados do petróleo da União Europeia à insanidade de Trump — Erdogan anunciou que continuará a importar petróleo iraniano. Assim a ameaça adicional de Washington de aumentar as sanções sobre o petróleo contra o Irã será contida. A sunita Arábia Saudita, um dos mais próximos aliados de Trump — onde a liberdade religiosa para tipos como o Pastor Brunson nunca existiram — já está furiosa com Erdogan. Não há muito tempo atrás, príncipe herdeiro Mohammed bin Salman denunciou a Turquia como parte de um “triângulo do mal” — as outras partes do “triângulo” sendo o xiita Irã e islamistas militantes.
Então pode-se ver como as coisas estão se alinhando no Oriente Médio no momento. Erdogan transformou Putin e o supremo líder da Irã em bons amigos e, como um oponente da Arábia Saudita, está naturalmente com ótimas relações com o Catar, cujo Emir — em um momento miraculoso que até o Pastor Brunson poderia invejar — acabou de prometer um investimento de 15 bilhões de dólares na Turquia. O cerco da Arábia Saudita ao Catar está começando a parecer tão infeliz com sua guerra contra os xiitas do Iêmen. Tropas turcas estão estacionadas no Catar para “protegerem” o pequeno emirado contra seu maior e ameaçador vizinho — e todos sabemos que é ele. E, uma vez que as relações entre a Síria e o Catar estão firmemente sendo reaquecidas — apesar de na escala mais diminuta — pergunto-me quem se beneficiará mais.
Bashar al-Assad, talvez? Tropas russas estão agora patrulhando as fronteiras entre Síria e Israel abaixo das Colinas de Golan que estão ocupadas. Os russos prometeram a Israel que os comparativamente poucas forças iranianas na Síria serão mantidas pelo menos a 80 km desse setor. A Síria, aliada da Rússia, precisa esmagar o último bastião islamista em Idlib com a ajuda da Rússia e empurrar os militantes mais intransigentes da província de volta para a Turquia. O Catar tem o dinheiro para reconstruir a Síria e assim estender sua influência através do território do Levante até o Mediterrâneo. Se o Catar for derramar ainda mais bilhões na Turquia, então poderemos ver algum tipo de aliança estratégica entre Doha Ancara. E uma redescoberta da amizade entre famílias entre Erdogan e Assad?
Colocado contra o horizonte, Erdogan não precisa ser um “falcão corajoso”. Apenas um astuto pássaro velho.
Fonte: https://www.independent.co.uk/voices/us-turkey-trump-erdogan-trade-war-a8493956.html