Os limites do jogo de cintura de Erdogan
A rejeição de Assad — que desde o início do conflito na Síria é uma bête noire para o Presidente turco Recep Tayyip Erdogan — desta vez falou mais forte. A Turquia apoiou mesmo a ação militar de americanos, franceses e britânicos contra o regime, apesar da enorme desconfiança que pauta as relações entre Washington e Ancara, e da colaboração ativa entre a Turquia e a Rússia sobre a Síria.
A contradição é evidente, mais uma no complexo conflito no martirizado país. “Os limites do jogo de cintura turco na Síria ficaram claramente expostos”, escreveu Amberin Zaman, uma respeitada analista e jornalista turca. Ainda há umas semanas Erdogan posava com Rouhani e Putin numa cimeira para resolver o conflito, à revelia do mundo ocidental — agora Ancara apoiou uma ação militar que para muitos alvejava também Moscovo e Teerão.
Ancara reagiu ao ataque com armas químicas em Douma de forma veemente, exigindo uma retaliação. “Esperamos que a resposta a este ataque do regime não tarde”, disse Bekir Bozdag, o vice-primeiro-ministro. “Aqueles que não impediram esta barbaridade são tão responsáveis como o regime”.
Critica esquece Rússia
Moscovo acusou o toque — mesmo antes de os mísseis terem sido disparados, o ministro dos Estrangeiros, Sergey Lavrov, sugeriu que a Turquia deveria entregar as áreas que controla no norte da Síria ao regime. Erdogan respondeu agastado; “Sabemos bem a quem deixaremos Afrin. Nós decidiremos, não o senhor Lavrov”. Mas a mensagem foi recebida em Ancara. O tom oficial mudou ligeiramente — críticas choveram sobre Assad, sem qualquer referência à Rússia e ao Irão.
O Presidente francês, Emmanuel Macron, ainda tentou explorar a contradição — numa entrevista ao canal francês BFM TV disse logo que “a operação dos três países tinha também o condão de criar um fosso entre a Turquia e a Rússia”. Mas os turcos já estavam na defensiva: “As relações da Turquia com a Rússia são suficientemente fortes para sobreviver aos desejos do Presidente francês de as ver deterioradas” respondeu o MNE turco, Mevlut Cavusoglu.
Nos últimos dois anos, Ancara e Moscovo, nominalmente em campos opostos na guerra na Síria, têm desenvolvido as suas relações bilaterais, em parte devido ao aprofundar do fosso entre a Turquia e o Ocidente — mas “Assad continua a ser o elefante no quarto”, escreveu Semih Idiz, um jornalista turco. “Surgem agora interrogações sobre o futuro do processo de Astana, patrocinado por Moscovo, Teerão e Ancara, que também está a tentar encontrar uma solução para a crise na Síria, paralelo ao do da ONU”.
Outros consideram que esta crise terá poucas consequências, já que a colaboração entre a Rússia e a Turquia é mais oportunista do que ideológica, mais transacional do que baseada em princípios comuns — ambos têm interesse e benefício. A Turquia precisa da colaboração de Moscovo para eliminar as milícias curdas sírias. Já Moscovo ganhará em criar divisões na NATO e nos grupos rebeldes que lutam contra Assad. Erdogan falou com Putin logo após o bombardeamento dos EUA na Síria, e Ancara conseguiu o impossível — criticar o “monstro” Assad, sem fazer referência à Rússia, ao mesmo tempo que deixava indiretas ao Ocidente. “Morre-se na Síria há sete anos — só se lembram da vossa humanidade quando armas químicas são usadas?”, ironizou o primeiro-ministro, Binali Yildirim.
José Pedro Tavares, correspondente em Ancara
Fonte: http://expresso.sapo.pt