O que motiva a ação militar da Rússia na Síria?
A repentina escalada da presença militar da Rússia na Síria, seguida por uma ofensiva aérea que já dura duas semanas, embaralhou as análises a respeito do Oriente Médio. A maior intervenção de Moscou na região em décadas colocou um ponto de interrogação nas reflexões de governantes, militares e analistas: o que Vladimir Putin pretende com a operação? Está cada vez mais claro que a intenção é provocar uma reviravolta no imbróglio sírio e, assim, coletar dividendos geopolíticos.
Oficialmente, o alvo de Moscou é o Estado Islâmico, mas não se pode dizer que há uma genuína intenção de destruir o grupo. Os bombardeios russos, assim como os da coalizão liderada pelos Estados Unidos, não podem cumprir essa tarefa sozinhos. Só uma consistente campanha terrestre poderia derrotar os jihadistas militarmente.
Está em curso uma ofensiva por terra na cidade de Alepo, reunindo tropas de Bashar al-Assad, do Irã e do grupo libanês Hezbollah, com cobertura aérea russa, mas em caso de sucesso ela será suficiente apenas para dar mais fôlego ao ditador sírio. Uma iniciativa decisiva contra o ISIS, como também é conhecido o grupo jihadista, necessita de dezenas de milhares de tropas, que nenhum país está disposto a fornecer, ao menos até agora. Com a Rússia, não é diferente.
Militares russos aposentados que atuaram na Ucrânia devem surgir na Síria como “voluntários”, mas o Exército russo não viajará ao Oriente Médio. “Aqui, ninguém deseja um segundo Afeganistão”, disse a CartaCapital Vladimir Petrovskiy, professor do Instituto de Ciência Política na Academia Russa de Ciências. Nos dez anos de guerra contra os mujahedin afegãos, entre 1979 e 1989, a União Soviética perdeu 14,4 mil soldados, tragédia até hoje percebida como um trauma nacional pelos russos.
O triplo objetivo de Putin
Se destruir o ISIS não é a prioridade russa, o que é? Os alvos bombardeados até aqui e as declarações oficiais do Kremlin indicam que o objetivo, ao menos inicialmente, é fortalecer Assad.
A maior parte dos mísseis russos caiu ao redor de Homs, Hama e Idlib, cidades localizadas em áreas disputadas pelo regime sírio e por uma miríade de grupos rebeldes, entre os quais estão ajuntamentos supostamente moderados apoiados pelos EUA e várias facções jihadistas, como o Jabhat al-Nusra, o braço da Al-Qaeda no Iraque. Além de enfrentar Assad, esse grupos são inimigos também do ISIS. Ao centrar fogo nos rebeldes, a Rússia demonstra que a prioridade é conceder uma sobrevida a Assad.
Putin não faz questão de esconder isso. Segundo disse em entrevista ao canal estatal Rossiya-1, seu objetivo é “estabilizar as autoridades legítimas e criar as condições para encontrar um compromisso político”. A frase é reveladora e serve de base para entender os objetivos domésticos e exteriores do presidente russo com a ação militar.
Internamente, a investida síria fortalece Putin pois ele pode continuar se apresentando à sociedade como o líder que está retomando, ou garantindo, o espólio soviético perdido após o colapso do comunismo. A primeira cartada foi a Crimeia, província ucraniana anexada pela Rússia em 2014, e a segunda é a base naval de Tartus, único acesso russo às águas do Mar Mediterrâneo. Cedida em 1971 por Hafez al-Assad, o pai de Bashar, a base fica na região ainda dominada pelo regime sírio.
Externamente, Putin tem três objetivos.
O primeiro deles é contestar o que Moscou enxerga como uma tentativa Ocidental de desestabilizar o Oriente Médio e as cercanias da Rússia por meio da exportação de revoluções, “supostamente democráticas” como disse Putin em discurso na ONU, que seriam meramente uma forma de provocar mudanças de regime sem os custos de uma intervenção direta. Isso pode soar como teoria conspiratória para quem acompanha o noticiário sob o prisma ocidental, mas o temor das revoluções exportadas é bastante real na Rússia, que se vê como alvo futuro de uma agressão. “Se derrubarem Assad, depois vão atrás do Irã e das ex-repúblicas soviéticas. E depois vão para onde?”, disse a CartaCapital Petr Fedorov, diretor do Departamento de Relações Internacionais do Canal Rossiya-1.
O segundo objetivo deriva do primeiro. O Oriente Médio vive um momento de transição, marcado pela política externa de Barack Obama para a região, que consiste em tentar equilibrar a tensão entre Irã e Arábia Saudita e, muitas vezes, em simplesmente não fazer nada, como no caso da Síria. Tal postura exaspera líderes árabes, alguns dos quais aliados de antiga data dos EUA que se acostumaram a ter em Washington a polícia da região.
Ao entrar no vácuo criado pela inação de Estados Unidos na Síria, Putin demonstra força e o desejo de posicionar a Rússia como uma potência capaz de interferir nos rumos do Oriente Médio. Sinais de que o intento está dando resultado foram dados por diversos países. Israel e Turquia tiveram seus planos para a Síria afetados pela ação do Kremlin – respectivamente, atacar o Hezbollah livremente e derrubar Assad, mas ainda assim o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, e o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitaram Moscou recentemente para dialogar.
O governo do Egito, que há meses vem nutrindo proximidade com Putin, é só elogios à missão, enquanto a Jordânia permanece em silêncio, sinal tácito de apoio a Putin. Para os jordanianos, a entrada da Rússia no conflito fortalece sua posição sobre a necessidade de um desfecho político para a crise síria, ideia diferente de seus principais aliados, a Arábia Saudita e os EUA, que exigem a saída de Assad. Com Moscou bancando a necessidade de uma solução negociada, a Jordânia tem um caminho diplomático a seguir.
O terceiro objetivo é mais opaco e diz respeito à crise na Ucrânia. As sanções impostas por conta deste conflito, somadas à derrocada do preço do petróleo, colocaram a economia russa em uma situação bastante delicada. Há por parte da Rússia uma tentativa de reverter esse isolamento internacional, que vem sendo realizada de duas formas. Na Europa, discretamente, Putin vem tentando reduzir as tensões na Ucrânia. No mesmo dia em que o bombardeio na Síria teve início, separatistas ucranianos pró-Rússia das chamadas repúblicas populares de Donetsk e Luhansk, na região do Donbas, leste da Ucrânia, assinaram um acordo com o governo de Kiev para retirar parte das tropas do front e passaram a falar no fim do confronto.
Enquanto isso, Putin tenta fazer do combate ao Estado Islâmico uma luta comum entre Moscou e Washington. O governo russo tem feito repetidas solicitações para um encontro diplomático e militar entre os dois países para coordenar as ações na Síria, e chegou a sugerir como interlocutor o primeiro-ministro, Dmitry Medvedev. As ofertas foram seguidamente rechaçadas por Barack Obama, que ao menos por enquanto deseja manter o isolamento de Putin.
A médio prazo, a situação pode mudar. Assad está sendo defendido neste momento, mas o interesse de longo prazo da Rússia não é perpetuar o ditador – é impedir a desintegração da Síria. Nas palavras de Petr Fedorov, o jornalista da Rossiya-1, “Assad não é sagrado, mas Estado sírio, sim”. A saída negociada de Assad, desta forma, poderia ser uma importante moeda de troca a ser oferecida pela Rússia em uma permuta pelo alívio das sanções por conta da Ucrânia.
Por enquanto, este cenário ainda é distante, pois não há perspectivas de que os atores envolvidos na guerra civil da Síria estejam minimamente dispostos a sentar em uma mesa de negociações. Até lá, Rússia e Estados Unidos precisam trabalhar para não piorar a já péssima relação, que emana da desconfiança mútua entre Obama e Putin. “Vejo com muita preocupação o significativo risco de incidente entre aeronaves russas e norte-americanas nos céus da Síria”, diz Petrovskiy, da Academia Russa de Ciências, que também é ex-militar. “Se isso não for evitado, as consequências podem ser péssimas”.