Estado Islâmico está em crise
“Os bombardeios da coalizão [liderada pelos EUA] enfraqueceram muito o Estado Islâmico. Não podemos mais nos movimentar, e nossos campos de petróleo e refinarias foram atingidos. Enquanto a coalizão continuar atacando o nosso califado na Síria e no Iraque, vamos promover atentados na Europa.”
Ahmad Derwish, 29, fala calmamente, com o olhar fixo na repórter da Folha e no tradutor de árabe.
Combatente do Estado Islâmico, ele chega à sala da polícia síria com uma venda nos olhos, algemas e sandálias tipo Rider cor de laranja. Tem a barba longa característica de extremistas islâmicos.
Foi capturado há cerca de um mês durante a ofensiva de Shaddadi, em que as Forças Democráticas da Síria, que reúnem soldados sírios curdos, árabes e turcomenos, reconquistaram um dos bastiões da facção no país.
A coalizão liderada pelos EUA fez 86 ataques aéreos durante o confronto. Mais de 500 pessoas morreram, entre elas, 400 militantes do EI.
Derwish tem a mão esquerda toda queimada, o braço direito envolto em gaze, e ferimentos com sangue seco na cabeça. Ele era emir (comandante) na região de Shaddadi, cidade estratégica que fica no meio da rota entre as duas capitais do Estado Islâmico -Raqqa, na Síria, e Mossul, no Iraque.
Para a entrevista à Folha, Derwish foi trazido de uma prisão secreta no nordeste da Síria, onde ele passa os dias em uma solitária. O soldado que o conduz está disfarçado com uma máscara, porque teme retaliações.
Derwish conta que o EI está em crise e cortou salários. Até o meio do ano passado, os soldados recebiam US$ 150 por mês (cerca de R$ 540).
Com a queda nas vendas de petróleo, e baixa global nos preços da commodity, o salário caiu para US$ 50 (R$ 180). Também diminuiu muito o fluxo de combatentes islâmicos estrangeiros que entravam pela Turquia para se unir à facção terrorista, diz.
Antes de Shaddadi, Derwish foi vice-emir em Sinjar, cidade iraquiana onde o EI prendeu e escravizou sexualmente mais de 2.000 mulheres da minoria yazidi.
Indagado sobre o que aconteceria comigo caso entrasse em alguma das áreas dominadas pelo Estado Islâmico, responde: “Você teria de se converter ao islã, ou então viraria escrava. Se estivesse vestida do jeito que você está, sem o niqab [véu que só deixa os olhos de fora], levaria chibatadas”.
Sou jornalista e sou cristã, informo. Seria aceitável você me decapitar, como foi feito com muitos jornalistas? “Não, porque você pode pagar a jizya”, diz Derwish, citando o imposto cobrado dos cristãos.
“Além do mais, eu não decapito ninguém, minha função no EI é lutar, fico no front de batalha e mato com balas, não cortando a cabeça das pessoas.
Ele afirma que não teve nenhuma escrava sexual, porque era casado, mas “presenteou” vários soldados com mulheres yazidis. Uma mulher bonita, de cerca de 18 anos, pode ser vendida por US$ 3.000, segundo ele.
“Yazidis são kafir [infiéis]; segundo o Alcorão, é legítimo usar essas mulheres.”
São legítimos atentados como os cometidos pelo EI em Bruxelas no dia 22 de março, em que 32 pessoas morreram? “É preferível que os infiéis morram no front de batalha”, diz Derwish. “Mas sempre é legítimo matar quem não segue a sharia [lei islâmica].”
Ele afirma que já matou 15 ou 20 pessoas, “mais ou menos”, e não se arrepende. “Eu estava defendendo minha religião.”
WAHHABISMO
Derwish nasceu em Homs, cidade síria a 160 km de Damasco. Quando era criança, foi morar na Arábia Saudita com o pai, que era mecânico.
Foi lá que ele se radicalizou. A Arábia Saudita é o berço do wahhabismo, vertente fundamentalista do islã sunita que quer resgatar a religião “pura”, como era praticada nos primórdios.
O wahhabismo estabelece que mulheres acusadas de adultério sejam apedrejadas até a morte e que sexo fora do casamento seja punido com decapitação (a não ser que seja com uma escrava sexual).
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Derwish foi para a Ucrânia fazer faculdade de farmácia e depois voltou para a Arábia Saudita, onde trabalhava como mecânico. Quando começaram os protestos contra o ditador Bashar al-Assad, em 2011, e a guerra eclodiu, ele resolveu voltar para a Síria.
Assad é alauita, vertente do islã alinhada aos xiitas, minoritários no mundo, e condenada pelos sunitas fundamentalistas (xiitas e sunitas se dividiram a partir de uma questão sobre a sucessão do profeta Maomé).
Ele é apoiado pelo Irã, maior país xiita, pela Rússia e pela milícia radical libanesa Hizbullah.
Vários parentes de Derwish foram presos e sumiram durante o cerco a Baba Amr, em Homs, em 2012. O tio, irmão de seu pai, foi morto pelo Exército do regime
Derwish entrou para o Exército Livre da Síria, milícia formada inicialmente por desertores do Exército sírio, que recebia armas da Arábia Saudita e Turquia, e apoio dos EUA e Europa.
Depois, juntou-se ao Estado Islâmico e passou dois anos e nove meses como membro da facção terrorista.
“Achei que derrubar Assad ia resolver todos os problemas, mas aí acabei entendendo que as coisas não eram tão simples, que havia várias milícias, e muita gente queria assumir o poder”, diz.
Quase 500 mil pessoas morreram na guerra da Síria desde 2011, segundo o Centro Sírio para Pesquisa Política. A maioria morreu em confrontos com as forças de Assad. Mais de 1,9 milhão foi ferido. A expectativa de vida no país caiu de 70 anos em 2010 para 55,4 em 2015.
FUTEBOL BRASILEIRO
Derwish faz uma pausa e pede um cigarro. Mas o EI não proíbe o fumo? Quem é pego fumando não vai preso?
“Fumo em segredo, em segredo”, diz, rindo.
O jihadista se desculpa por não dominar o inglês, mas diz que fala russo e pergunta se entendo o idioma. “Não; sou do Brasil, já ouviu falar?”
“Sim! Rivaldo, Ronaldo, Roberto Carlos”, diz, referindo-se aos jogadores.
É fã de futebol. Mas, ultimamente, não podia assistir aos jogos. Eram autorizados a ver apenas os noticiários, e, mesmo assim, só aqueles que não tinham mulheres como repórteres ou âncoras.
Derwish nunca viu o líder do EI, Abu Bakr al-Baghdadi, outro admirador de futebol. Mas diz não ter dúvidas de que Baghdadi está vivo. “E nós obedecemos a ele, fazemos o que ele ordenar, porque ele é o califa.”
Mesmo assim, Derwish afirma que está um pouco pessimista com as perspectivas da luta contra os infiéis.
“Antes, havia muita gente querendo se sacrificar pela causa, fazer tudo pelo EI, hoje não é mais assim”, diz. “Houve muitos erros, há uma radicalização excessiva e tem gente vendendo informações sobre mim e sobre a facção.”
A milícia curda YPG, que faz parte das Forças Democráticas Sírias, afirma que todos os prisioneiros serão julgados, mas não se sabe quando e não está determinado em que tipo de crime eles serão enquadrados. Provavelmente, os poucos militantes do EI que não foram mortos em combate irão morrer na prisão, diz um oficial.
Derwish diz não saber o que esperar do futuro.
“Não quero mais lutar, não sei mais o que é verdade aqui no confronto na Síria, tenho muitas dúvidas.”
Ele pede ajuda para levantar sua camiseta e mostra os dois tiros que levou no peito durante o confronto.
“Está escrito no Alcorão, todos nós vamos morrer, mas Alá nos prometeu o paraíso, porque matamos os infiéis.”
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
ENVIADA ESPECIAL A RIMELAN (SÍRIA)