Mesmo com o aperto na fiscalização da Otan (aliança militar do Ocidente) no mar Egeu e o acordo entre União Europeia e Turquia, que passa a valer neste domingo (20), famílias de refugiados não desistem de pegar o bote rumo ao “paraíso” europeu.
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Flavio Forner/Folhapress |
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O imã Ahmet Altan no cemitério de Dogancay, que recebe refugiados que morreram no mar Egeu |
Neste ano, até 17 de março, 144.899 chegaram à Grécia vindos da Turquia, sendo que outros 362 morreram no mar, segundo a Organização Internacional de Migrações. A grande maioria eram sírios, afegãos e iraquianos. No mesmo período do ano passado, 10.535 fizeram a travessia.
Em todo o ano passado, 853.650 refugiados chegaram à Grécia; 3.771 morreram afogados tentando cruzar.
CENTRO DO TRÁFICO
Esmirna é o centro do tráfico de refugiados para a Grécia. As famílias vêm da Síria, do Iraque e do Afeganistão, fugindo da guerra.
Todas as noites, os coiotes ficam na frente da mesquita no bairro de Basmane e saem com famílias carregando suas roupas e pertences em sacos plásticos pretos e o dinheiro e os celulares dentro de bexigas, que amarram no braço.
De lá, os refugiados são transportados em vans até cidades na costa como Ayvalik, Bodrum e Cesme, de onde pegam o bote até ilhas gregas como Lesbos.
Esse foi o trajeto do menino sírio Alan Kurdi, 3, que se afogou com a mãe e o irmão em setembro de 2015. A foto de Kurdi morto em uma praia atraiu a atenção mundial para o drama dos refugiados.
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Flavio Forner/Folhapress |
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Cemitério na cidade turca de Dogancay, que recebe refugiados que morreram na travessia do mar Egeu |
O hotel Hekimoglu, no bairro de Basmane, está lotado de refugiados há quatro anos. “As pessoas ficam aqui de um dia a um mês, dependendo de quanto tempo demora para sair o bote”, conta Ali
Hekimoglu, dono do hotel, que é na realidade uma pensão caindo aos pedaços.
Os quartos abrigam até dez pessoas –cada uma paga 15 liras turcas (US$ 5) por noite. Segundo Hekimoglu, por causa das patrulhas no Egeu e do frio, o movimento caiu no último mês –mas só 5%.
“As pessoas estão desesperadas, não vão desistir”, diz. “Muitos saem daqui para pegar o bote, voltam uns dias depois contando que o barco afundou e os amigos morreram; aí tentam de novo.”
Em um dos quartos do hotel, espreme-se uma família de oito pessoas há mais de uma semana. São iraquianos da minoria yazidi, da região de Sinjar. Eles escaparam de um massacre do Estado Islâmico (EI). Escondidos, sobreviveram comendo folhas de árvores durante dias.
“Queremos ir a qualquer país longe do EI”, diz o agricultor Wahid Sidi, 36. Ele precisa de US$ 3.000 para levar à Grécia a família toda: sua mulher e mais seis filhos, de 1, 7, 9, 11, 13 e 15 anos. Já juntou pouco mais de US$ 2 mil, com ajuda de parentes que estão na Europa.
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O agricultor iraniano Wahid Sidi com sua família em Esmirna |
“Prefiro morrer no mar a morrer com o EI”, dizia, enquanto seu vizinho de quarto mostrava no celular uma foto do primo morto afogado.
A família não tem dinheiro para comprar coletes salva-vidas, diz Sidi. Não que isso seja alguma garantia.
Em janeiro, foram apreendidos 1.200 coletes defeituosos em uma fábrica em Esmirna –em vez de flutuar, ficavam mais pesados na água.
Nas lojas do centro da cidade, apesar da fiscalização, vendem-se coletes por 70 LT (US$ 25) o infantil e 100 LT (US$ 35) o adulto. Nos vendedores ambulantes, eles são bem mais baratos.
Mehmet, que não quis revelar o sobrenome, vende dez por dia, a 30 LT cada (US$ 10). “Os europeus é que estão matando essas pessoas, não são os coletes que são falsos”, diz.
ACORDO
A partir deste domingo (20), a Turquia passará a receber de volta todos os refugiados que forem pegos cruzando o Egeu rumo à Grécia.
Em contrapartida, a UE terá de respeitar a regra do “um por um”: a cada refugiado sírio que retornar à Turquia, um outro que já estiver em acampamentos turcos será reassentado em algum país do bloco. Mas haverá um limite de 72 mil reassentados.
O problema é que há na Turquia quase 3 milhões de refugiados. E, segundo a Agência de Resposta a Desastres e Emergências da Turquia, há lugar para apenas 300 mil, em 26 campos no país.
“É um absurdo a Turquia pegar de volta essa gente, ninguém sabe onde vão colocá-los”, diz Hekimoglu.
Muitos nem têm a opção de ficar. O sírio Ali Mohammed, 21, foi atingido por uma bomba em Deir ez-Zor, no leste da Síria. Sofreu uma lesão grave na coluna, por isso não sente nada nas pernas e precisa usar sonda urinária.
Os hospitais na Turquia dizem que não têm como tratá-lo. Ele e o pai vão pegar um bote. O plano é ir para a Alemanha, onde têm familiares.
MÁRTIRES
Quando a guarda-costeira resgata os corpos no mar, leva-os para o necrotério, onde ficam por 15 dias.
Se não aparecer nenhum familiar, é realizado um exame de DNA. Aí o corpo é preparado de acordo com o ritual islâmico –fazem a ablução, embrulham no pano branco dos pés à cabeça, e enterram sem caixão. Muitas vezes o imã Altan é o único presente.
“No islã, todos aqueles que morrem na guerra, no parto, afogados, em incêndios ou terremotos são considerados mártires”, diz o imã.
“Estes refugiados são mártires duas vezes –estavam na guerra defendendo seu país e depois morreram afogados. Vão direto para o paraíso.”
PATRÍCIA CAMPOS MELLO
ENVIADA ESPECIAL A ESMIRNA, TURQUIA
Fonte: folha.uol.com.br