Acordo da UE com a Turquia fortalece Erdogan
O acordo com a Turquia, de legalidade duvidosa, fortalece o autoritarismo de Erdogan e atesta a fraqueza de Bruxelas
A história do relacionamento entre a Turquia e a União Europeia está cheia de ironias. Desde a vitória da revolução nacionalista em 1922, a Turquia quis ser plenamente aceita como uma integrante laica da civilização ocidental, sem sucesso. Entrou no Conselho da Europa em 1949, na Otan em 1952 e fez o seu primeiro pedido de admissão na Comunidade Econômica Europeia, precursora da União Europeia, em 1959. Desde então, o tema da integração europeia criou uma série de frustrações para os turcos.
Embora a filiação da Turquia nunca tenha sido formalmente descartada, foi indefinidamente adiada, ora por questões políticas, ora por razões de instabilidade econômica, ao passo que a vizinha Grécia, apesar de sua fragilidade financeira e falta de transparência pública, foi aceita em 1981 (sete anos após emergir da ditadura) e mesmo integrada na Zona do Euro por razões políticas e estratégicas.
O Goldman Sachs auxiliou no ocultamento do seu endividamento real, com as consequências hoje conhecidas. Ancara teve, por vezes, o apoio de Londres e a razão mais forte para a exclusão era o receio de Paris e Berlim de fazer de um país muçulmano o maior integrante da União Europeia em população (hoje ainda está atrás da Alemanha, mas deve superá-la em 2018) e abrir o continente à livre circulação de seus cidadãos.
Em 2002, o ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing, então presidente de uma comissão sobre o futuro constitucional da Europa, explicitou ao jornal Le Monde o que muitos outros líderes europeus pensavam em privado: “A Turquia jamais poderá pertencer à União Europeia por ter outra cultura, enfoque e modo de vida”.
Alegou que a adesão dos turcos abriria caminho a países como o Marrocos, pois “a capital e a maior parte da população ficam na Ásia”, embora a localização nesse continente não tenha impedido a adesão de Chipre.
Dois anos depois o então cardeal Joseph Ratzinger, depois papa Bento XVI, se opôs com argumentos “culturais” que disfarçavam mal o preconceito. “A Turquia sempre representou um continente diferente, em contraste permanente com a Europa. Unir os dois continentes seria um erro. Ela poderia tentar criar um continente cultural com os países árabes vizinhos.”
A Turquia tivera governos laicos de estilo europeu desde a redemocratização de 1983, abolira a pena de morte, melhorara a situação dos direitos humanos e ampliara os direitos da minoria curda. O partido islâmico AKP chegou ao governo em 2002, mas por vários anos portou-se com a compostura de um partido democrata-cristão da Europa Ocidental.
Agora, o governo do presidente Recep Tayyip Erdogan está em plena deriva autoritária. Além de atacar as guerrilhas curdas na Síria e bombardear sua própria cidade curda de Cizre, prendeu (em 26 de novembro) o diretor e chefe de redação do Cumhuriyet, jornal mais antigo do país, por denunciar a cumplicidade dos serviços secretos turcos com o Estado Islâmico e tomou o controle (em 4 de março) do maior jornal de oposição, o Zaman(ligado ao líder religioso Fethullah Gülen), por suposta lavagem de dinheiro.
E é nesse momento de retrocesso político e institucional que a Turquia celebra seus mais importantes acordos com a União Europeia e mais avança para se associar de fato à organização. Mais uma vez, xenofobia e islamofobia são determinantes. Tornou-se imperativo abrir portas a Ancara, com autoritarismo, conivência com o terrorismo e tudo, contanto que seu governo ajude a conter a o movimento de refugiados da Síria e de outros países muçulmanos.
Na cúpula da segunda-feira 7, em Bruxelas, a União Europeia chegou com o premier turco Ahmet Davutoglu a um acordo preliminar pelo qual aumentará de 3 bilhões de euros para 6 bilhões o apoio supostamente destinado a atender aos 2,75 milhões de refugiados em território turco, liberará os turcos da necessidade de visto para viajar pela Europa a partir de junho e avançará na integração do país à organização.
Também se falou de criar “zonas humanitárias seguras” na Síria, proposta fora do alcance dos lados e só possível no quadro das negociações entre o governo de Bashar al-Assad e rebeldes patrocinadas pelos Estados Unidos e Rússia.
Em troca, a Turquia colaborará para deter os refugiados que tentam chegar à Europa e receberá de volta aqueles que tiverem o asilo recusado após chegarem lá. A União Europeia compromete-se a levar da Turquia, por outro lado, um número de asilados “legítimos” equivalente ao das expulsões.
Esses pontos são de legalidade duvidosa. Vincent Cochetel, responsável pela Agência da ONU para os refugiados (Acnur) na Europa, advertiu que a expulsão coletiva de estrangeiros está proibida pela Convenção Europeia de Direitos Humanos e pelo direito internacional.
Filippo Grandi, chefe mundial da agência, acrescenta que a Turquia não pode ser considerada um país seguro para os migrantes, no que é apoiado por várias ONGs de direitos humanos, inclusive a Anistia Internacional e a Humans Rights Watch.
A Turquia teria enviado de volta à Síria muitos refugiados e atirado em outros que tentaram entrar no país, além de não proporcionar emprego, educação e assistência social suficientes para aqueles que recebeu. Os curdos, em especial, enfrentam perigo de vida evidente se forem forçados a retornar à Turquia, onde são vistos como um povo inimigo.
O acerto, impulsionado principalmente pela Alemanha para evitar o colapso do Tratado de Schengen e tentar salvar a popularidade de Angela Merkel, foi considerado satisfatório pela França e Itália, fortalece Erdogan em seu país e o encoraja a manter a linha autoritária, pois a União Europeia demonstra, na prática, como isso é irrelevante para sua diplomacia. Jornais e partidos da oposição turca sentem-se traídos por essa realpolitik.
O respeito à democracia e aos direitos fundamentais outrora invocados pelos europeus para balizar as negociações com a Turquia mostrou-se irrelevante para as políticas concretas.
Outro insatisfeito é o governo de Chipre, integrante da União Europeia desde 2004. Essa ilha teve parte do seu território ocupado pela Turquia desde 1974, quando ela interveio para proteger a minoria turca que proclamara uma República Turca de Chipre do Norte em retaliação ao golpe de Estado em sua capital promovido pela ditadura militar grega então no poder com o propósito de anexar a ilha à Grécia.
A junta militar de Atenas e o governo títere de Nicósia caíram logo em seguida, mas a Turquia recusou retirar-se e até hoje as negociações para a reunificação da ilha não tiveram sucesso. Chipre ameaça vetar qualquer iniciativa para admitir Ancara na União Europeia enquanto não houver uma solução para seu problema.
O acordo também abre um precedente pouco animador. Só é tentado porque Bruxelas foi incapaz de fazer aceitar e cumprir um acordo sobre a distribuição de refugiados e impedir seus integrantes de suspender unilateralmente o Tratado de Schengen. Abrir mão de princípios e buscar a cumplicidade de um governo autoritário contra os imigrantes por não ser possível cobrar disciplina e solidariedade internas é sinal de fraqueza.
Merkel quer ver no acordo um retorno às normas pelas quais os refugiados devem pedir asilo ao primeiro país aonde chegarem sem pretender escolher seu destino, mas, depois de ela mesma ter insistido na abertura das fronteiras, é uma derrota indisfarçável. E nem sequer se pode contar com a solução do problema, pois as guerras do Oriente Médio e África continuam a pôr desesperados em movimento e, se não puderem passar pela Turquia, tentarão caminhos mais perigosos.
Não se perca de vista que os maiores prejudicados são os próprios refugiados. Ao visitar o primeiro-ministro grego Alex Tsipras, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, fez um apelo aos migrantes: “Não venham para a Europa. Não acreditem nos traficantes de pessoas. Não arrisquem suas vidas e seu dinheiro. Isso não servirá de nada”. Queria fazer crer que a migração é por razões principalmente econômicas, o que não é verdade.
Embora os relatos sobre o acordo ainda informal falem apenas da situação dos sírios, estes são 46% daqueles que chegam à Grécia pela Turquia, ante 25% de afegãos e 16% de iraquianos, povos igualmente envolvidos em guerras civis pelas quais o Ocidente tem grande parte da responsabilidade. Por quais critérios, se não os da arbitrariedade ou da corrupção, uns e não outros teriam o asilo recusado e refugiados hoje na Turquia seriam chamados para ocupar o seu lugar?
Do início do ano a 6 de março chegaram à Europa mais 141.141 refugiados por mar, 131.847 dos quais pela Grécia. Enquanto o acordo era fechado em Bruxelas e antes mesmo que entre em vigor, Eslovênia, Croácia, Macedônia e Sérvia acabavam de fechar a rota dos Bálcãs que no ano passado levou 850 mil migrantes da Grécia à Alemanha, via Áustria ou Hungria. Isso deixou 36,5 mil migrantes bloqueados em acampamentos na Grécia, 14 mil dos quais retidos na vila de Idomeni, na fronteira recém-fechada da Macedônia.
Nada está acertado sobre como lidar com a crise humanitária criada na Grécia, país sem recursos para administrá-la devidamente. Muitas desses refugiados não têm para onde voltar e nada têm a perder.
por Antonio Luiz M. C. Costa
*Publicado originalmente na edição 892 de Carta Capital, com o título “Medidas desesperadas”