Resgates que decidem vida ou morte de refugiados
RESGATES – Por sorte, nesta manhã o Mediterrâneo está particularmente tranquilo, e, embora haja apenas água e céu em torno do Dignity, de repente se vê da proa, ao horizonte, uma linha cinzenta. Em poucos segundos, perfilam-se várias cabeças e corpos de pé e, no minuto seguinte, a visão dos olhos tristes e do desânimo de 11 subsaarianos. Reina o silêncio.
— Estamos aqui para ajudá-los — grita em francês (o megafone é agressivo demais) Salah, que, junto com David e Ángel, se aproxima em um bote para estabelecer o primeiro contato com as 60 mulheres, 45 homens e seis crianças cujas vidas ele irá literalmente salvar.
É um momento delicado, pois os migrantes poderiam se lançar à água impensadamente tamanho o seu desespero que vivem há meses, somado ao fato de que muitos nem sequer sabem nadar.
— Se nós ficarmos calmos, eles também ficarão — sugere Daniel.
São 8h16, e a concentração dos resgatadores se mistura com o silêncio daqueles que deixaram a terra firme durante a noite. A tensão é difícil de conter, já que tudo, inclusive um naufrágio, ainda pode acontecer. Pouco a pouco, o bote vai passando os coletes salva-vidas cuja cor, laranja, contrasta com a cor escura dos africanos, uma imagem já costumeira em jornais da TV e nos jornais nesta época do ano.
Entorpecidos, descalços, sujos, ensopados de água, pois passaram mais de 12 horas navegando com água e lixo dentro do seu bote, eles são transferidos para a embarcação que os levará até o Dignity em grupos de 15; ali, poderão comer, dormir e ser socorridos pelas médicas a bordo.
Passaram-se apenas 20 minutos e o resgate avança à toda. Arturo e Daniel erguem os migrantes — em sua maioria da Nigéria —, que confiam em seus salvadores, sejam estes quem for, às vezes até de olhos fechados.
— Não têm força para subir, termos de puxá-los — explica Arturo, que está amarrado, por sua vez, com um cinturão ao barco para não cair no mar.
Imediatamente, Maria José, a médica da missão, os examina com um sorriso. “Tudo bem”, “Olá”, diz ela, comunicando-se com eles pelos olhos, com uma piscadela fraternal.
— Welcome on board (Bem-vindo a bordo) — diz Alfredo, cumprimentando um por um, devolvendo-lhes, assim, um mínimo de dignidade.
Agora, estão todos salvos.
Astrid, a parteira que realizou um parto a bordo em 2015, segura no peito um bebê de quatro meses enquanto a mãe resiste no bote e espera que a peguem com o seu filho, que logo sorri para a parteira. Carla, a única cozinheira do barco, com apenas 23 anos, acaricia amavelmente com um detector de metais o corpo de cada pessoa que entra, pois em nenhuma missão da ONG se permite o porte de facas ou revólveres.
Lucas registra os dados dessas pessoas que hoje nasceram de novo; sexo, nacionalidade, idade… Rapidamente, Alfonso, Gabi e Ernest pegam os coletes para usar com a segunda turma. Os demais caem imediatamente, entregues.
A equipe médica, depois de examinar todo mundo, coloca pulseiras coloridas em seus braços.
— A branca é para os que estão bem; a preta, para os menores desacompanhados; a verde para os que podem estar com sarna; e a vermelha para os que precisarão de acompanhamento quando chegarem em terra — explica Hayley, a coordenadora da missão.
O resgate prossegue, e até mesmo os membros mais experientes da equipe brincam afirmando que se trata do “menor” que fizeram até hoje. Mas o dia está apenas começando, e o capitão, Francesc, acaba de avistar ao longe um outro bote.
— Desta vez há pessoas aos montes, transbordando pelas laterais. São muitos mais — alerta.
O Bourbon Argos, um navio fretado pela MSF Bélgica, está resgatando, quase ao mesmo tempo, centenas de pessoas que avançavam em três embarcações. O bom tempo estimula a saída de migrantes que, depois de pagar de 500 a 1,2 mil euros (entre cerca de RS$ 2 mil reais e RS$ 4,8 mil) aos traficantes e esperar meses confinados em prédios nas praias líbias — daí a sarna —, saem à deriva com uma bússola e a única instrução de seguir sempre para o norte.
No ano passado, cerca de 150 mil pessoas cruzaram o mar até as costas italianas; neste ano, até o momento, já são 48 mil, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM). Outras 850.000 pessoas atravessaram rumo à Grécia em 2015.
Diante desse nível de chegadas, a União Europeia desenvolve políticas de contenção que incluem um acordo com a Turquia para enviar de volta a seus territórios os migrantes e refugiados que chegaram ao litoral grego, bem como um plano de investimento em países pobres, apresentado ontem pela Comissão Europeia, que visa a diminuir as causas do fluxo emigratório. O esquema contempla, ainda, um mecanismo de punição aos Estados que não colaborarem para frear o fluxo de migrantes.
Enquanto a equipe de ação humanitária distribui alimento — uma espécie de biscoito arenoso energético de meio quilo —, água, meias, toalha e lenços para as mulheres, Lizzi, a enfermeira canadense, atende às mulheres e às crianças dentro do barco. Quatro estão grávidas, e algumas estão febris.
Mas a amabilidade desanuvia de alguma forma a sua exaustão, e muitas delas conseguem até mesmo arranjar força para exibir um sorriso a seus salvadores: “Thank you, thank you” (obrigado, obrigado), esboça, com os lábios, uma delas, apontando, com as mãos, para o seu próprio coração. Não consegui dizer nada.
— Estou fugindo do Boko Haram [grupo ligado ao Estado Islâmico na Nigéria], da fome e da pobreza — diz Comfort, uma jovem de 19 anos com trancinhas grudadas na cabeça nas quais toca o tempo todo. — Quero ir para a Europa. Para qualquer país — sorri, ao lado de uma outra jovem que acaba de conhecer. Agora são amigas.
As que estão em situação mais delicada dormem em beliches, mas o chão se transformou no leito de quase todas as demais.
— Meus olhos ficam girando — diz, assustada, uma mulher bastante jovem. Ela ignora a sensação de enjoo decorrente de estar dentro de um barco.
— É normal — diz Lizzi procurando acalmá-la. — Já vai passar.
Do lado de fora, apesar de o termômetro marcar apenas 26 graus, o sol é forte, e os 45 homens subsaarianos se refugiam sob o toldo do convés. Uma hora mais tarde, depois do segundo resgate, eles serão 162. Observam-se uns aos outros, dormem, esfregam as mãos dando graças a Deus, rezam para Alá, vão ao banheiro, vomitam por causa do enjoo, a sede, a fome, o medo… Chama a atenção, no entanto, que ninguém, com exceção dos bebês, está chorando.
— Senti muitas vibrações. As pessoas estão felizes por nos ver — conta Jean Philippe, o novo coordenador da missão, em sua primeira experiência em alto mar.
Em 92 minutos, o Dignity havia devolvido a vida a 230 pessoas que, mais uma vez, lançaram-se à sorte por caminhos os mais absurdos para escapar da guerra, das perseguições e da miséria. Todas elas, depois de se recuperar um pouco, foram transferidas para o Bourbon Argos — que trazia 362 pessoas a bordo — para seguir viagem por pelo menos mais um dia rumo à Itália, onde serão desembarcadas 592 pessoas.
Dessa forma, o Dignity continuará a poder percorrer a região a fim de salvar as vidas daqueles que esta noite, com o negócio das máfias em pleno vigor, embarcarem no litoral da Líbia. A mesma coisa será feita pelo navio Aquarius, que tem a presença dos MSF e do SOS Mediterranée e que transferiu para uma embarcação irlandesa mais 235 migrantes, 58 dos quais eram menores desacompanhados.
“Rescued 8/06/2016” (Resgatado 8/06/2016), escreve um dos oficiais, com um spray preto, na lateral dos botes.
O Dignity deixa à deriva o segundo bote. O primeiro, enquanto isso, arde ao longe com as chamas provocadas pelas embarcações militares que patrulham — e às vezes resgatam pessoas também — o canal da Sicília. Mesmo assim, “ainda deve haver centenas deles espalhados pelo mar”, suspira Salah.
Fonte: www.oparana.com.br