Porque a Turquia tenta destruir o movimento Hizmet?
No mês de julho deste ano, grande parte do mundo foi sacudido pela tentativa de golpe de Estado perpetrado por membros das forças armadas turcas. Indevidamente planejado e realizado, em suas vinte e quatro horas de duração, o golpe custou cerca de trezentas vidas. A tentativa de golpe foi amplamente condenada pela política turca, pelo setor dos negócios e líderes religiosos. Recep Tayyip Erdoğan, presidente da Turquia, escapou ileso de ser capturado ou ate mesmo um possível assassinato, ele foi aclamado como herói nacional.
Nas primeiras horas do golpe, Erdoğan se dirigiu à nação responsabilizando a tentativa de golpe por uma surpreendente fonte: a comunidade Hizmet, um grupo de muçulmanos progressivos, conhecidos e respeitados internacionalmente por seu trabalho na educação, socorro aos necessitados, publicações varias e na medicina. Os membros do Hizmet, (“serviço” no idioma turco), são inspirados pelos ensinamentos de um estudioso muçulmano tradicionalista, Fethullah Gülen, que foi inequivocamente, um dos primeiros a condenar o golpe. Porque Erdoğan acusou Gülen, que vive em reclusão nos Estados Unidos, de traição e planejamento do golpe? Por ironia, a experiência pessoal derruba o rumo dos acontecimentos, nos últimos anos Erdoğan havia sido defensor das atividades do Hizmet.
Em maio de 2009, recebi um prêmio da Olimpíada Internacional. Essencialmente o festival é um evento cultural que apresenta canções, danças e recitais de poesia realizados pelos alunos das escolas turcas estabelecida em vários lugares do mundo, o evento aconteceu em um moderno centro de convenções em Ancara, capital do país, com milhares de espectadores presentes. A Olimpíada Internacional foi promovida e organizada por membros do movimento Hizmet e a maioria dos artistas eram alunos das escolas do Hizmet no exterior. Quando eu, juntamente com um punhado de outros premiados, subimos ao palco para receber nossos prêmios, antes de agitarmos nossas mãos, já se via o brilho do sorriso de ate então o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyib Erdogan.
O incidente sublinha o facto de que a menos de uma década atrás, as relações entre o partido de Erdogan “Justiça e Desenvolvimento” (AKP) e o movimento Hizmet refletiam atitudes de cooperação e respeito. Observadores estrangeiros em Ancara ainda se referiam ao Hizmet como “a ala religiosa do AKP.” Naqueles dias, mesmo que por características imprecisas, se revelou um ponto de vista comum entre os turcos e outros também, houve algum tipo de ligação ideológica entre o AKP e os seguidores de Gülen.
Não há dúvida de que os apoiadores de Fethullah Gülen tiveram grande influência na Turquia. Eles ocuparam as melhores instituições de ensino superior e escolas preparatórias para os estudantes, ano após ano obtiveram os melhores resultados nos exames de admissão das faculdades padronizadas. Membros do Hizmet publicaram artigos no Zaman, jornal de grande circulação e altamente respeitado na Turquia, referido pelo próprio Erdoğan como “o guardião da democracia na Turquia.” Os membros Hizmet publicaram dezenas de revistas de associações de profissionais, médicos, professores, líderes empresariais, publicações populares e profissionais . Eles montaram hospitais e clínicas. Na sociedade turca que é altamente polarizada, eles realizaram “diálogos” nacionais que buscavam construir a unidade entre os pensadores e líderes turcos: direita e esquerda, sunitas e alevitas, turcos e curdo, muçulmanos, judeus e cristãos.
No entanto, as nuvens de tempestade estavam se formando, e os perspicazes observadores podiam ver muitos problemas pela frente. Em uma coluna profética do jornal centro-esquerda “Hurriyet” em outubro de 2010, o comentador político Mehmet Ali Birand escreveu:
– Eu não sei se eles tem consciência disso, mas um perigo que precisa ser levado a sério aguarda o movimento Gülen. Aos olhos da sociedade turca, que acredita nas teorias de conspiração, o movimento Gülen é mitificado para muito além de suas reais dimensões. O poder e a influência do movimento Gülen é visto tão exageradamente que se não forem tomadas as devidas precauções, este poder imaginado um dia vai destruí-lo … Se a tendência atual não mudar, os futuros políticos agiram neste movimento com vista a aniquilar-lo.
Birand, que alegou não ser membro e nem ter antipatia ao Hizmet, acredita que “o poder atribuído ao movimento Gülen é extremamente exagerado. Ele não reflete a verdade, são na maioria “ares exagerados “.
O primeiro sinal de tensão entre Erdoğan e Gülen pode ser datado durante os protestos pró-democráticos no Parque Gezi, em junho de 2013, quando Gülen criticou a supressão de mão pesada do governo turco durante os protestos. A verdadeira ruptura veio no final daquele ano, quando investigadores supostamente associados ao Hizmet, passaram a ser perseguidos por acusações de corrupção feitas contra os filhos de vários ministros do governo turco, implicando assim os próprios filhos de Erdogan. Desde então, Erdoğan (presidente desde 2014) tem procurado destruir o Hizmet e acabar com a sua influência na sociedade turca. A tentativa de golpe no mês de julho durou apenas algumas horas, tempo suficiente para Erdogan acusar Gülen pelos planos e seus seguidores pela realização do golpe. Desde então, o governo comprometeu-se ao “McCarthyite”, espécie de caça às bruxas, resultando na demissão e prisão de diretores de universidades, chefes de polícia, oficiais militares e editores de jornais; apreensão da propriedade de empresários simpáticos a Gülen; Prisão estimada de sessenta mil cidadãos turcos. Em seguida, no dia 2 de outubro, o governo deteve o irmão de Fethullah Gülen, Kutbettin, no oeste da Turquia, declarado pela agência de notícias semi-oficial da Turquia, como procurado por conexões com uma “organização terrorista armada”.
A campanha anti-Hizmet de Erdogan afetou as relações EUA-Turquia. O governo turco pediu a extradição de Gülen (residente nos EUA) para a Turquia, quanto o secretário de Estado Americano, John Kerry observou que os Estados Unidos não extraditam residentes com base em acusações infundadas, mesmo as acusações feitas por chefes de Estado. Ele convidou o governo turco “para apresentar qualquer evidência legítima por escrutínio.” Até agora, não ha nenhuma evidência do envolvimento de Fethullah Gülen ou do Hizmet próximas ou associadas ao golpe fracassado.
Para aqueles que conhecem Gülen pessoalmente, ou tiveram contato com os membros de coração aberto e idealistas do movimento, as acusações de “terrorismo” são incongruentes. Por conhecer Gülen por mais de vinte anos, ao me aposentar, ouvia-o recitar o Alcorão ou como professor ou pregador. Eu vivi uma interpretação particularmente atraente do Islam. O conceito de seu alicerce é o “Ikhlas”, o que significa fazer tudo, não importa quão modesto seja, fazer sem pretensões, fazer inteiramente para o prazer de Deus. Este princípio espiritual, original, pratica fundamental para o Islam, tem motivado os seguidores de Fethullah Gülen a se comprometerem com a administração e ensino em suas escolas por lugares tão diversos como Phnom Penh, Bruxelas, Accra, e escolas em bairros do centro da cidade, em áreas urbanas tais como Milwaukee e Cleveland. Eles estão cavando poços
Muitos americanos têm visitador o movimento Hizmet pessoalmente, através das viagens culturais muito bem organizadas para a Turquia, patrocinadas por associações de diálogo locais. Para muitos não-muçulmanos, as viagens são o primeiro encontro com uma comunidade islâmica, que não tem interesse em violência ou dominação, mas sim em expressar a viva compaixão e a misericórdia de Deus.
Estou muito admirado pelos membros do Hizmet, dos quais eu conheço centenas, e muitos dos quais eu conto entre os meus amigos pessoais. Estive em seus retiros anuais, onde eles incentivam uns aos outros para viver de acordo com os elevados ideais islâmicos . Tenho ouvido o testemunho de judeus, bispos turcos e alevitas, todos seguidores de Fethullah Gülen. Eles são seus parceiros e aliados no esforço para construção de uma sociedade turca verdadeiramente inclusiva. Eu tenho conversado com estudantes cristãos de Moçambique, Indonésia e Filipinas, graduados de escolas do Hizmet, que são gratos pelo excelente educação que receberam e negam que eles estiveram sujeitos a qualquer forma de proselitismo.
Poderia isto tudo ser trabalho para uma simplesmente demonstração pública, uma fachada para esconder uma conspiração destinada a obter a dominação e o poder? Após o golpe, alguns jornalistas escreveram acriticamente, adotado a linha do governo. Entre os mais prolíficos esta Mustafa Akyol, no New York Times e no Al-Monitor, ele nos diz que “há boas razões para acreditar nas acusação (de Erdogan])”, mas ele não nos oferece quaisquer razões credíveis. Ele diz que a comunidade do Hizmet é organizada hierarquicamente; seus membros foram “infiltrados” no sistema judicial, militar e policial; um ex-membro (anónimo) queixou-se a Akyol que há um “lado negro” para Hizmet. Nesta base frágil ele aceita o ponto de vista do governo. Isto é um jornalismo sério ou propaganda?
Escrevendo no New York Review of Books, Christopher de Bellaigue, juntou pedaços de casos plausíveis de envolvimento do Hizmet em conversas com turcos na rua, boatos, opinião pública, fofocas e especulações fértil. Isto resume que a visão de muitas pessoas na Turquia. A crença de que se este é ponto de vista do governo, então deve haver algo. Se faz uso efetivo da voz passiva: “Os conspiradores foram apontados pelo governo e por muitos outros, como aqueles que agiram em nome de Fethullah Gülen”; “A visão quase que unânime entre os turcos – é – que o movimento Gülen estava envolvido”; “Parece plausível para alguns observadores com quem falei na Turquia, de que poderia haver uma aliança oportunista entre os militares e os Gülenists para se livrarem de um presidente”; a respeito das reivindicações do envolvimento americano, Bellaigue reverte para o mesmo argumento de plausibilidade: “Para estes turcos faz todo o sentido que a mensagem pró-ocidental, aos olhos norte-americanos, faria os Gülenists preferíveis a Erdoğan .”
O envolvimento do Hizmet no golpe, que a maioria das pessoas na Turquia considera como possibilidade plausível, pode significar apenas que elas foram enganadas pela propaganda de Erdogan. E não há dúvida de que o governo turco tem sido eficaz em convencer o povo turco por suas calúnias contra o Hizmet.
Mas se Hizmet não estava envolvido, então quem estava? Como de costume a imprensa turca tem nomeado todos os suspeitos: os Estados Unidos, Israel, o Vaticano, os nacionalistas curdos, ISIS. Alguns argumentaram, como foi observado em alguns artigos politico independentes ( da mesma forma como Hitler usou o incêndio do Reichstag para suprimir todos que se opunham a ele), que o golpe foi administrado por Erdoğan para criar um pretexto para a destruição do Hizmet e tambem suprimir seus críticos seculares da esquerda. Certamente, ele tinha muito a ganhar e tem. De fato, ele ganhou a maioria.
Suponhamos que o envolvimento do Hizmet no golpe fosse teoricamente possível, mesmo em um cenário inverosímil e improvável. Como disse o secretário norte americano John Kerry (Assim como muitos outros observadores que tiveram impressões positivas pelo movimento)
– Erdoğan Peço: “Por favor, se você puder, apresente qualquer prova a favor de suas reivindicações. Caso contrário, como alguém poderia definir qualquer afirmação verdadeiras ou infundada contra um alguém de consciência religiosa e líder de uma comunidade que está fazendo o bem para o mundo? sua campanha anti-Hizmet poderia ser nada mais do que um ato de vingança pela denúncia de irregularidades contra membros de sua família, ou uma distração destinada a impedir uma investigação contínua das acusações de corrupção? ”Sobre o autor
Thomas Michel, SJ, é o autor de vários livros sobre as relações entre muçulmanos e cristãos. Sobre o pensamento islâmico na Turquia moderna, incluindo a paz e o diálogo na sociedade pluralista e uma visão cristã do Islam. Ele lecionou por muitos anos na Indonésia, Turquia e Qatar.