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A coluna de Fethullah Gulen no Le Monde

A coluna de Fethullah Gulen no Le Monde
agosto 18
16:05 2016

Fethullah Gulen: “Convoco uma investigação internacional sobre o golpe fracassado na Turquia”.

Na noite de 15 de julho, a Turquia passou pela tragédia mais catastrófica em sua história recente como resultado da tentativa de golpe militar. Os eventos daquela noite poderiam ser chamados de um sério golpe de terror.

Turcos de todos os setores da vida que pensavam que a era dos golpes militares estava acabada demonstraram solidadriedade contra o golpe e a favor da democracia. Enquanto a tentativa de golpe estava em progresso, condenei-a com veemência.

Vinte minutos após a tentativa de golpe militar ter vindo à tona, antes que os reais atores fossem conhecidos, o Presidente Erdogan apressadamente me culpou. É preocupante que uma acusação foi promulgada sem se esperar que emergissem os detalhes do evento e os motivos dos perpetradores. Como alguém que enfrentou quatro golpes nos últimos 50 anos, é especialmente insultante ser associado com a tentativa de golpe. Eu categoricamente rejeito tais acusações.

Tenho vivido uma vida reclusa em autoexílio em uma pequena cidade nos Estados Unidos pelos últimos 17 anos. A asserção de que eu convenci o oitavo maior exército no mundo – a quase 10.000 quilômetros de distância – para agir contra seu próprio governo não é apenas sem fundamento, é falso, e não ecoou pelo mundo.

Se existem quaisquer militares entre os golpistas que se considerem como simpatizantes do movimento Hizmet, na minha opinião essas pessoas traíram a unidade se seu país ao fazerem parte de um evento onde seus próprios cidadãos perderam suas vidas. Eles também violaram os valores que cultivei através de minha vida, e fizeram com que centenas de milhares de pessoas inocentes sofressem com o tratamento opressivo do governo.

Se existirem pessoas que agiram sob a influência de uma cultura intervencionista que persiste em existir entre alguns dos militares e que colocaram esses reflexos intervencionistas à frente dos valores do Hizmet, o que acredito se improvável, então um movimento todo não pode ser culpado pelas más ações desses indivíduos. Deixo eles para o julgamento de Deus.

Ninguém está acima do julgo da lei, incluindo a mim. Gostaria que os responsáveis por essa tentativa de golpe, independentemente de suas identidades, recebam a punição que mereçam se forem condenados em um julgamento justo. O judiciário turco tem sido politizado e controlado pelo governo desde 2014 e, consequentemente, a possibilidade de um julgamento justo é muito pequena. Por essa razão, advoguei várias vezes pelo estabelecimento de uma comissão internacional para investigar a tentativa de golpe e expressei meu compromisso em aceitar as descobertas dessa comissão.

Os participantes do movimento Hizmet não estiveram envolvidos em nenhum incidente violento sequer por toda sua história de 50 anos. Eles nem sequer foram às ruas para confrontar as forças de segurança turcas enquanto vem sofrendo com a “caça às bruxas” do governo, para usar as próprias palavras de Erdogan, nos últimos três anos.

Apesar de estar sujeito a uma campanha de difamação e de sofrer debaixo da opressão estatal durante os últimos três anos nas mãos de uma aplicação da lei politicamente controlada e do judiciário, os participantes do movimento Hizmet têm cumprido a lei, se opondo a injustiças por meios legítimos, apenas defendendo seus direitos dentro do quadro jurídico.

As agências de cumprimento da lei na Turquia têm sido mobilizadas nos últimos três anos para investigarem e revelarem um suposto “estado paralelo” que alegam que eu dirijo.

A administração chamou a investigação de corrupção pública de 2013 de uma tentativa organizada, feita por simpatizantes do Hizmet dentro da burocracia, para derrubar o governo. Apesar de terem detido 4.000 pessoas, expurgado dezenas de milhares de funcionários do governo e confiscado ilegitimamente centenas de ONGs e empresas particulares, as autoridades não foram capazes de encontrar sequer uma evidência plausível para provarem suas alegações.

O primeiro-ministro da Turquia chamou uma oportunidade de se encontrar comigo de “enviada pelos céus” em maio de 2013; contudo, depois que a investigação de corrupção pública emergiu em dezembro de 2013, ele começou a usar uma linguagem de ódio, com termos como “assassinos” e “vampiros sugadores de sangue” quando se referia aos participantes do movimento Hizmet.

Após a desleal tentativa de golpe em 15 de julho, os ataques se tornaram mais insuportáveis. Os funcionários do governo turco também começaram a se referir a mim e às pessoas simpáticas aos meus pontos de vista como “vírus” e “células cancerígenas que precisam ser eliminadas”. Centenas de milhares de pessoas que apoiaram as instituições e organizações afiliadas ao movimento Hizmet foram desumanizados de uma forma ou de outra.

Suas propriedades privadas foram confiscadas, contas bancárias apropriadas e seus passaportes cancelados, restringindo suas liberdades de viajar. Centenas de milhares de famílias estão vivendo uma tragédia humanitária devido à caça às bruxas que vem ocorrendo. Reportagens mostram que quase 90.000 indivíduos foram expurgados de seus empregos e 21.000 licenças de professores foram revogadas.

O governo turco está forçando essas famílias a morrerem de fome ao impedir que eles trabalhem e ao proibir que deixem o país? Qual é a diferença entre esse tratamento e as práticas pré-genocidas através da história europeia?

Testemunhei cada golpe militar na Turquia e, como muitos outros cidadãos turcos, sofri durante e após cada um. Fui aprisionado pela ordem da administração da junta após o golpe de 12 de março de 1971. Após o golpe de 12 de setembro de 1980, um mandato de detenção foi emitido contra mim e vivi como fugitivo por seis anos.

Logo após o golpe militar pós-moderno de 28 de fevereiro de 1997, uma ação judicial que pedia a pena capital foi iniciada contra mim com a acusação de “uma organização terrorista desarmada consistindo de uma pessoa”.

Durante todas essas administrações opressivas dominadas pelos militares, três casos que me acusavam de “liderar uma organização terrorista” foram abertos e, em cada caso, fui inocentado das acusações. Foi alvo das administrações militares autoritárias naquela época, e agora enfrento exatamente as mesmas acusações projetadas de uma maneira ainda mais ilegítima por um regime civil autocrático.

Eu tinha relações amigáveis com líderes de vários partidos políticos, como o Sr. Turgut Ozal, Sr. Suleyman Demirel e Sr. Bulent Ecevit, e genuinamente apoiava suas políticas que achava benéficas para a maioria da comunidade. Eles me trataram com respeito, especialmente quando reconheciam atividades do Hizmet que contribuem para a paz social e a educação.

Apesar de que me distanciei da ideia do Islã politico, louvei as reformas democráticas tomadas pelo Sr. Erdogan e pelos líderes do AKP durante o primeiro mandato deles.

Mas através da minha vida, fui contra golpes militares e intervenções nas políticas domésticas. Quando declarei a 20 anos atrás que “não existe volta da democracia e secularismo do estado”, fui acusado e insultado pelos mesmos islamistas políticos que são próximos da atual administração. Ainda apoio as minhas palavras. Mais de 70 livros baseados em meus artigos e sermões que abrangem mais de 40 anos estão disponíveis publicamente. Não só não existe uma expressão sequer que legitimize a ideia de um golpe nessas obras, mas, pelo contrário, elas discutem valores humanos universais que são a fundação da democracia.

Emancipar a Turquia dos vários ciclos de autoritarismo é possível apenas através da adoção de uma cultura democrática e de uma administração baseada no mérito. Nem um golpe militar nem uma autocracia civil é a solução.

Infelizmente, em um país onde órgãos de mídia independentes são fechados ou postos sob a custódia do governo, uma porção significante dos cidadãos turcos foram feitos acreditar – através de uma propaganda pró-governo implacável – que eu seja o agente por detrás do golpe de 15 de julho. Contudo, a opinião mundial, que é moldada pela informação objetiva, claramente vê que o que está acontecendo é uma tomada de poder pela administração sob o disfarce de uma caça às bruxas.

É claro, o que importa não é a opinião da maioria mas as verdades que emergirão através do processo de um julgamento justo. Dezenas de milhares de pessoas, incluindo a mim mesmo, que foram o alvo dessas graves acusações, gostariam de limpar seus nomes através de um processo judicial justo. Não queremos viver com essa suspeita que foi jogada sobre nós. Infelizmente, o governo tem exercido controle político sobre o judiciário desde 2014, destruindo assim a oportunidade para os simpatizantes do Hizmet limparem de seus nomes essas acusações.

Eu convoco abertamente o governo turco a permitir que uma comissão internacional investigue a tentativa de golpe, e prometo minha completa cooperação com essa questão. Se a comissão descobrir que um décimo das acusações contra mim é justificado, estou pronto para retornar para a Turquia e receber a pena mais severa.

Os participantes do movimento Hizmet foram supervisionados por centenas de governos, agências de inteligência, pesquisadores ou organizações sociais civis independentes por 25 anos e nunca se descobriu que estivessem envolvidos em atividades ilegais. Por essa razão, muitos países não levam a sério as acusações do governo turco.

A característica mais importante do movimento Hizmet é não buscar poder político, mas em vez disso buscar soluções de longo prazo para os problemas que ameaçam o futuro de suas sociedades. Em uma época quando sociedades de maioria muçulmana aparecem nas notícias por terrorismo, derramamento de sangue e subdesenvolvimento, os participantes do Hizmet têm focado em criar gerações educadas que estejam abertas ao diálogo e contribuindo ativamente para suas sociedades.

Uma vez que sempre acreditei que os maiores problemas que essas sociedades enfrentam são a ignorância, conflitos dirigidos pela intolerância e a pobreza, sempre encorajei os que dessem ouvidos a construírem escolas em vez de mesquitas ou centros de ensino do Alcorão.

Os participantes do Hizmet são ativos na educação, saúde e ajuda humanitária não apenas na Turquia, mas também em mais de 160 países por todo o mundo. A característica mais significante dessas atividades é que elas servem a pessoas de todas as religiões e origens étnicas – não apenas a muçulmanos.

Os participantes do movimento Hizmet abriram escolas para meninas nas mais difíceis áreas do Paquistão e continuaram a fornecer educação na República Centro-Africana durante a guerra civil do país. Enquanto o Boko Haram levava jovens meninas como reféns na Nigéria, os participantes do Hizmet abriam escolas que educavam meninas e mulheres. Na França e no mundo francófono, encorajei as pessoas que compartilham das minhas ideias e valores a lutarem contra grupos que adotem ideologias islâmicas radicais e a apoiar as autoridades nesse esforço. Nesses países, lutei para que muçulmanos fossem reconhecidos como membros livres da sociedade e que contribuem para ela, e os exortei para que se tornassem pate da solução ao invés de estarem associados aos problemas.

Apesar de receber ameaças, eu categoricamente condenei numerosas vezes grupos terroristas como a Al Qaida e o ISIS (Estado Islâmico) que contaminam a face luminosa do Islã. Contudo, o governo turco está tentando convencer os governos por todo o mundo a agirem contra escolas que foram abertas por indivíduos que não fizeram parte da tentativa de golpe de 15 de julho, e que sempre rejeitaram categoricamente a violência. Meu apelo aos governos por todo o mundo é que ignorem as alegações do governo turco e rejeitem suas exigências irracionais.

De fato, a decisão política do governo turco de designar o movimento Hizmet como uma organização terrorista resultou no fechamento de instituições tais como escolas, hospitais e organizações de auxílio. Os que foram presos são professores, empresários, médicos, acadêmicos e jornalistas. O governo não produziu nenhuma evidência que mostre que as centenas de milhares de pessoas que são alvos da caça às bruxas do governo apoiaram o golpe ou que estavam associadas àlguma violência.

É impossível justificar ações tais como queimar um centro cultural em Paris, deter ou manter cativos membros da família de indivíduos procurados, negar cuidados médicos a jornalista detidos, fechar 35 hospitais e a organização de ajuda humanitária Kimse Yok Mu, ou forçar 1.500 reitores de universidades a renunciarem como parte de uma investigação pós-golpe.

Parece que, ao apresentar os recentes expurgos como esforços voltados apenas aos participantes do Hizmet, o governo Turco está de fato removendo da burocracia qualquer um que não seja leal ao partido governante, enquanto também intimida organizações sociais civis. É aterrorizante ver violações dos direitos humanos ocorrendo na Turquia, incluindo a tortura detalhada em reportagens recentes da Anistia Internacional. Essa é verdadeiramente uma tragédia humana.

O fato que a tentativa de golpe de 15 de julho – que foi uma intervenção antidemocrática contra uma governo eleito – foi frustrada com o apoio dos cidadãos turcos é historicamente significativo. Contudo, o golpe ter fracassado não significa uma vitória para a democracia. Nem a dominação por uma minoria nem a dominação de uma maioria que resulta na opressão de uma minoria nem o regime de um autocrata eleito é uma democracia verdadeira.

Não se pode falar de democracia na ausência do Estado de Direito, da separação de poderes e direitos humanos e liberdades essenciais, especialmente a liberdade de expressão. A vitória verdadeira para a democracia turca apenas é possível ao se reviver esses valores essenciais.

Fethullah Gulen é um intelectual, pregador e defensor social.

Tradução da coluna do Sr. Gulen publicada originalmente no Le Monde em 10 de agosto de 2016.

Fonte: http://afsv.org/gulen-le-monde-oped-in-english/#.V7YErCgrLDd

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