Líder espiritual ou mentor de golpe?
Um líder religioso septuagenário que vive desde o fim dos anos 1990 em isolamento voluntário nas montanhas de Pocono, na Pensilvânia (EUA), intriga especialistas e divide opiniões na sua terra natal, a Turquia, e no mundo.
Para uns, Muhammed Fethullah Gülen, de 75 anos, é um homem de paz, que ganhou fama ao pregar um islamismo moderado e o diálogo interreligioso e, com o movimento que fundou por volta dos anos 60, o Hizmet (serviço, em turco), propagar “valores universais de humanidade e educação” que são “um instrumento emancipador da sociedade”.
Mas outros, como o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, seu ex-amigo, não o veem como alguém tão inofensivo assim.
Para Erdogan, ele é um extremista que liderou a tentativa fracassada de golpe militar ocorrida no país no último dia 15.
As autoridades da Turquia declararam o Hizmet uma organização terrorista e pediram aos EUA a extradição de Gülen – ele é considerado dirigente de um Estado paralelo que conspira para desestabilizar o governo com ajuda de seus seguidores na polícia e em instituições públicas e privadas.
Uma petição pró-extradição já obteve mais de 70 mil assinaturas no site da Casa Branca. Além disso, circulam nas redes sociais vídeos e mensagens de turcos que apoiam a prisão do clérigo – mensagens com a hashtag em inglês #ExtraditeTerroristGulen são comuns no Twitter.
Outros tuítes pedem que a candidata democrata à Presidência, Hillary Clinton, colabore com sua extradição dos EUA.
Em nota, o religioso caracterizou de “ridículo, irresponsável e falso” sugerir que ele tenha tido alguma participação no que chamou de “horrível golpe frustrado”. E, afirmando ser vítima de “vingança política”, pediu que o governo americano rejeite seu pedido de extradição à Turquia.
Refúgio na montanha
O clérigo é chamado por simpatizantes e estudantes do islã de Hocaefendi – algo como “respeitado professor” em turco.
Nascido na Província turca de Erzurum, próxima à fronteira com a Armênia, desde o fim dos anos 90 vive recluso em um centro de retiro espiritual no pequeno município americano de Saylorsburg, com pouco mais de mil habitantes.
No local, mantém uma rotina de preces, estudos e ensinamentos a 25 estudantes de Teologia do Islã – famílias costumam vir do exterior em busca de seus conselhos.
Os relatos são de uma saúde frágil – sofre de diabetes, problemas cardiovasculares -, o que explicaria a raridade das aparições públicas.
No decorrer das décadas, seus sermões atraíram não só colaboradores, a maioria deles muçulmana, mas também o respeito do mundo ocidental e de líderes como o papa João Paulo 2º.
Ele foi o primeiro pensador islâmico a condenar publicamente os ataques de 11 de Setembro – criticou o uso político, religioso e ideológico do islã para justificar atos de terrorismo.
Com a diáspora turca pelo mundo, o movimento ganhou força em mais de cem países. Estima-se que entre 10% a 15% da população turca simpatize ou colabore com o movimento.
Amigo próximo do clérigo e diretor da ONG nova-iorquina Alliance for Shared Values, que segue os preceitos do Hizmet, Alp Aslandogan define o movimento como um fenômeno social.
“Sua filosofia prega que o homem deve se desenvolver espiritualmente e realizar trabalhos para a sociedade em escolas, hospitais, instituições humanitárias.”
A ramificação do movimento é agora alvo de ofensiva de Erdoğan – há relatos de prisões de seus apoiadores na Turquia, assim como de jornalistas críticos ao governo.
Nesta quarta-feira, autoridades turcas anunciaram o fechamento de dezenas de organizações de mídia, ainda em reação ao golpe fracasssado do dia 15. Três agências de notícias, 16 emissoras de TV, 45 jornais e 15 revistas serão vetados.
Defensor da democracia?
Especialistas contam que Gülen e Erdogan têm visões parecidas do mundo islâmico, mas deixaram de se entender quando o assunto é política.
O diretor do Programa de Direitos Humanos e Construção da Paz da Universidade de Columbia (EUA), David Phillips, lembra as divergências entre os dois sobre o processo de paz com os curdos, em 2012.
“A relação dos dois é uma questão que gera muita especulação. Gülen fez objeção ao papel de mediação do governo turco com o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão). Erdogan já o viu como uma ameaça à sua autoridade”, avalia.
Para os seguidores do clérigo, as acusações do governo turco não fazem sentido.
“Gülen não quer que a religião seja usada em favor dos interesses políticos, pessoais e econômicos. Ele defende fervorosamente a democracia”, afirmou à BBC Brasil o porta-voz de seu movimento no país, Mustafa Göktepe, presidente do Centro Cultural Brasil-Turquia.
“Não são novas as acusações contra o Hizmet. Erdogan vem fazendo isso durante os últimos três anos, mais precisamente a partir do dia 17 de dezembro de 2013. De lá para cá, de tudo o que acontece de ruim na Turquia, se acusa diretamente o Hizmet com declarações irresponsáveis, caluniosas e sem provas”, reclamou. “Somos o bode expiatório do Erdogan.”
Parte da imprensa turca acusa o presidente de atuar de forma autoritária, freando investigações de escândalos de corrupção no seu governo, demitindo policiais e juízes, além de aumentar o controle sobre o Poder Judiciário e a internet.
Três vezes seguidas escolhido primeiro-ministro, Erdogan foi eleito presidente no ano passado, com 52% dos votos e em um cenário de polarização social.
O mistério do golpe
Especialistas não conseguem chegar a um acordo sobre a eventual participação de o clérigo no golpe frustrado.
“Já se provou que não há absolutamente nenhuma evidência que aponte que Gülen esteja envolvido na defesa, no financiamento ou tenha se responsabilizado por ações terroristas. Erdogan vê qualquer que seja seu opositor como terrorista. Gülen tem apoiadores leais por seus trabalhos de caridade e também pessoas que estão em altos cargos na polícia e no Judiciário”, disse Phillips, de Columbia.
Outros, porém, avaliam que ainda não é possível assegurar que nenhum seguidor do Hizmet tivesse envolvimento no golpe.
“Ainda precisamos olhar os fatos”, ponderou o diplomata americano W. Robert Pearson, que foi embaixador na Turquia entre 2000 e 2003.
“É verdade que o governo parece ter tido uma reação exagerada ao exonerar milhares de pessoas de um dia para o outro. A impressão é que já havia uma lista de nomes que considerava desleais e, quando esse incidente ocorreu, os deteve sem realmente saber se tinham alguma coisa a ver com o golpe ou não”, disse à BBC Brasil.
Cabe agora à Turquia tomar os passos acordados com os EUA para que avance o pedido de extradição do clérigo. Mas até o momento, explica Pearson, o país ainda não apresentou provas consistentes de envolvimento com terrorismo, que justificariam a aprovação do pedido.