Movimento Gülen cria nova geração renascentista
Carroll continua: “Hoje, há ateístas e teístas e somos destinados a compartilhar este planeta. Como ateístas e crentes viverão juntos? Assim, não quis finalizar o livro sem um diálogo textual entre Gülen e um ateísta.”
Jill Carroll é diretora do Centro Boniuk para Estudos e Avanço de Tolerância Religiosa da Universidade Rice, em Houston, Texas. Carroll, que ensina História do Pensamento na universidade, considera a filosofia de Gülen semelhante a de alguns filósofos sobre ética, desde Platão e Confúcio até Kant e Sartre. A consistência interna do Movimento, a fé no amor, que é fundamental à natureza dos seres humanos, e o comprometimento com ações voltadas para o futuro fizeram com que ela fosse capaz de observar a versão de uma utopia personificada. A experiência de Carroll é um aviso àqueles que têm uma visão interna sobre o Movimento e é, também, um guia para aqueles com uma visão externa dele. A primeira virtude que Carroll aprendeu com o Movimento Gülen foi paciência e ela, pacientemente, respondeu nossas longas e sucessivas perguntas.
Em que contexto aconteceu seu primeiro contato com o Movimento Gülen e como este contexto influenciou seu entendimento sobre ele?
Eu estava dirigindo um centro para tolerância religiosa na Universidade Rice naquela época. Acredito que aquela posição foi o que me pôs no radar da comunidade em Houston, Texas. Isto explica porque fui convidada a ir à Turquia, em primeiro lugar.
Então, acho que o ponto de partida é diálogo inter-religioso. Isso formou as lentes ou a estrutura pela qual observei o Movimento. O ângulo inter-religioso foi o que me iniciou no Movimento e continua a ser o contexto pelo qual avalio e vivencio o Movimento. Eu estava interessada em ver como estes muçulmanos, estes muçulmanos turcos, lidavam com pessoas de outras religiões. Estes são muçulmanos que, obviamente, são comprometidos, virtuosos e vigilantes. Como eles interagem com pessoas de outras religiões? Assim, observei e tentei ver se suas atividades, suas ações se equiparavam às suas palavras. Sim, elas se equiparavam.
Voltemos ao seu contexto interno: Sua educação e estudo anteriores devem ter influenciado a forma como você percebe o Movimento. Na verdade, em seu livro, você incluiu um diálogo com Confúcio, Sartre e Platão. Isso se relaciona ao seu contexto interno.
Em 20 anos de ensino na universidade, eu ensinei cursos relacionados à história a maior parte do tempo, por exemplo, História do Pensamento Intelectual. Chamamos estes cursos, nos Estados Unidos, “de Platão à OTAN.” Você desenvolve a capacidade de ver temas amplos através dos séculos, através de culturas da China à África. Quando comecei a ler as ideias do Sr. Gülen, vi algumas conexões, imediatamente. Procurei pontos em comum entre suas ideias, de contexto muçulmano turco, e as de Confúcio ou Sartre em alguns assuntos chave. É por causa do meu treinamento e da minha experiência como professora que procuro por conexões como estas. Sou uma generalista; alguém que vê a floresta. Outras pessoas são orientadas a enxergarem as árvores, folhas e os detalhes.
Em Gülen você encontrou alguém de uma tradição que não faz parte da sua, mas cujo modo de pensar não pertencem à tradição dele. O que isso significa para uma generalista como você?
É muito excitante porque em alguém como Gülen você não somente encontra o pensador que pensa como Platão – porém em um contexto muçulmano – ou que diz as palavras de Confúcio como se fossem suas, mas existe, também, esta comunidade de ativismo que está trazendo isso tudo à vida no mundo prático. Uma coisa é ser um filósofo; outra é ser um ativista e foi estranho encontrar estas duas coisas em um único homem.
Você já teve o diálogo platônico como uma teoria em sua mente. O que é diferente nas atividades de diálogo no Movimento Gülen?
Acredito que o diálogo que vemos no movimento de pessoas inspiradas por Gülen não é similar aos Sócrates ou Platão, mas ao de Aristóteles. Aristóteles em sua escola encorajou seus estudantes a dialogarem com o mundo, a se engajarem com ele, a saírem do ambiente confortável e aprenderem sobre os outros e a educar a si mesmos desta maneira. Isto é mais próximo, em espírito, ao que esta comunidade e o Sr. Gülen dizem. O termo diálogo é muito rico e fecundo da maneira que Gülen fala sobre ele. A própria ênfase em educação é parte deste diálogo. Educação, por definição, significa que você dialoga com ideias que nunca ouviu antes. Você se envolve com noções, conceitos, teorias e perspectivas estranhas e se abre a elas. Você se amplia para recebe-las e aprende com elas. Assim, por definição, educação é diálogo. A ênfase nas escolas, a mistura de valores espirituais com ciência e conhecimento, é um tipo diálogo levado além do que as pessoas imaginam.
Há outra modalidade de diálogo que tem a ver com o compromisso geral com o mundo. Isso é importante porque vem de uma tradição espiritual. No Sr. Gülen, há uma espécie de camada sufista. Ele não é um sheik sufista; não há um irmandade, porém há um revestimento sufista. Muitas religiões têm tradições onde o verdadeiros líderes espirituais se distanciam do mundo. Eles vivem sozinhos na floresta, numa caverna ou deserto. No entanto, Gülen diz: “OK, há um Paraíso e devemos pensar na eternidade, mas fazemos isto melhor quando nos engajamos com este mundo.” Este é um diálogo com o mundo por meio de negócios, comunidade, serviço, contribuições e participação, melhorando-o e contribuindo para ele. Assim, tudo isso tem um papel na definição geral de diálogo. Por isso, vejo-o como um termo fecundo.
Você prevê um futuro em que este diálogo levará a uma nova forma de pensamento, uma nova renascença, talvez? Isto poderia levar ao nascimento de uma nova geração de Aristóteles?
Acredito que seja possível. Você já pode ver Gülen articulando esta nova ideia de pessoa ideal, esta pessoa da renascença. Algumas vezes, você vê Gülen dizer que está escrevendo este livro ou esta mensagem, não para os leitores de hoje, mas para os leitores daqui 25 anos. Ele é muito voltado para o futuro e a ideia é que há um tipo de humanidade que estamos construindo. Essa é uma nova humanidade de pessoas que, independentemente de sua identidade, têm capacidade para ser globais. Esta vai ser uma pessoa renascentista de um jeito novo. Esta pessoa é proficiente em muitas coisas diferentes, confortável em ambientes múltiplos, sem ser ameaçada pela identidade ou crenças de outras pessoas, confortável, capaz, disposta a trabalhar, capaz de trabalhar. Essa é a nova humanidade, creio que vemos isto em negócios, educação, comunicação, em muitas atividades. Acredito que podemos criar um modo de viver e existir totalmente novo.
Pessoas que constroem suas identidades baseadas numa percepção de ameaça se sentirão ameaçadas por este movimento. Como você avalia as reações delas?
É verdade dizer que, em muitos casos, definimos nossa identidade em relação a outras identidades. Não acredito que isto seja um monopólio do Ocidente. Acho que vemos isto no mundo todo e na história. Identidades fortes foram criadas ao rotular outras pessoas como ameaças e dizer que devemos nos unir para combate-las. Me lembra o pensamento do famoso filósofo judeu Martin Buber, que fala sobre a relação “eu-tu” reconhecendo que há diferença, que somos pessoas diferentes e, ainda assim, há uma qualidade de relacionamento que pode estar adiante. Acho que a falha do Oeste não é tanto uma falha de valores Iluministas ou valores liberais. É uma falha em alcança-los. Modernidade é uma conquista e nós fracassamos em alcança-la. Devemos reconhecer a falha em viver estes valores e enxergar por que fracassamos. É neste ponto que Gülen está certo: “Sacrificamos nosso entendimento do ser humano no altar da ciência e tecnologia.” Há muitos recursos, de várias tradições religiosas e filosóficas para reabilitar esta relação entre o “eu” e o “outro”. Simplesmente, precisamos tirar vantagem delas.
Algumas pessoas não gostaram de sua comparação entre Sartre e Gülen. Como você vê essa crítica e o fato de que você vê similaridades entre Sartre e Gülen?
Eu sei que o termo humanismo é problemático. Por isso, usei algumas páginas no início do meu livro para explicar meu uso desse termo e colocá-lo em seu devido contexto histórico. O termo “humanismo laico” tem uma história curta, apenas algumas centenas de anos. Humanismo, por outro lado, tem uma história de 2500 anos. Você tem humanistas que são não-teístas, mas também tem humanistas pietistas. Al-Gazzali foi um humanista. Gülen, na minha opinião, é um humanista. Um humanista pietista. Ele diz que porque Allah/Deus nos fez como somos, devemos ser representantes ou legatários d’Ele na Terra. Deus nos criou para sermos responsáveis pelo mundo. Sartre, como humanista laico, diz que não existe Deus; o que quer que aconteça neste mundo é resultado do que fazemos. Consequentemente, somos responsáveis. Partindo de perspectivas completamente diferentes, ambos chagaram à conclusão de que, como humanos, devemos nos responsabilizar pelo mundo. O essencial é que: Sartre era um ateísta; Gülen é um crente. Hoje, há ateístas e teístas e somos destinados a compartilhar este planeta. Como ateístas e crentes viverão juntos? Assim, eu não quis finalizar o livro sem um diálogo textual entre Gülen e um ateísta.
Qual é a mensagem de Gülen sobre este senso de responsabilidade para a geração da cultura pop?
Acredito que a mensagem para este mundo de cultura pop tem que ser estejam alertas. Acorda! Acorda para sua humanidade. Na cultura pop, isto envolve acordar para o fato de como somos manipulados por comerciais, propaganda direcionada, música, arte e todas essas tendências de moda; como estamos reduzidos, especialmente no Ocidente, a ser consumidores. Somos carteiras ambulantes e somos manipulados sem perceber. Assim, a mensagem de Gülen é “Esteja alerta.”
Em Gülen, encontramos um sentido de responsabilidade que, na verdade, supera a noção de eu. Você não acha este cuidado com o outro, a ponto de esquecer a si mesmo, um pouco utópico?
Poderia ser utópico, mas não os vejo em contradição. Não vejo uma contradição porque Gülen fala a linguagem do altruísmo, serviço, trabalho voluntário e doação de si mesmo (sacrifício). Não há sacrifício se não houver um “eu” a ser doado. O “eu” a ser doado deve valer a pena, um “eu” que se sacrifica, abençoa o mundo. Na verdade, há muita ênfase na autocultivação na comunidade espiritual de Gülen. Este é um tipo de doação de si mesmo baseado em um “eu” cuidadosamente cultivado que é forte o suficiente para doar, doar-se completamente sem esperar nada em retorno.
Bem, isto claramente contradiz a cultura materialista. Vivendo neste mundo materialista isto não lhe pareceu bom demais para ser verdade?
Sim, sim, eu repeti essas mesmas palavras. Isto não pode ser verdade, não pode ser real. Deve haver uma pegadinha. Eu estava receosa porque sou cínica. Vivemos num mundo em que as pessoas tiram vantagem das outras e em que as pessoas fingem ser uma coisa, mas são outra, especialmente em religião. Então, eu estava muito desconfiada. Porém, depois de visitar comunidades em mais de 40 cidades, em 8 países, percebi que isto [o Movimento] era consistente. Mesmo sendo muito descentralizado, percebo que é muito consistente. Por isso, acredito. Creio que é real.
E sobre um objetivo político secreto? Há aqueles que alegam que educação e atividades empresariais levarão ao poder político no fim.
Por definição, ser humanístico significa estar engajado no mundo dos humanos. Este não é um movimento separatista, de outro mundo, focado na vida eterna. Este é um movimento focado no agora, em construir o mundo para o agora, para o hoje. Neste sentido, sim, esta é uma visão amplamente humanística que inclui um impacto na realidade político-social. O que não significa que Gülen e o Movimento tenham algum plano secreto sinistro para tomar o poder. Não vejo nada que, remotamente, lembre uma ideologia que tenha a ambição de tomar o controle politicamente. Ao contrário, este é um movimento criando um certo tipo de pessoa que viverá e será ativa no mundo.
Você disse que acha o termo “movimento” problemático.
Sim, não gosto dele.
“Escola de pensamento” funcionaria?
Acredito que o Movimento está criando uma escola de pensamento. Quero dizer, esta é uma forma de existência. Um paradigma. Este é um paradigma de pensamento e existência, de pensamento e comportamento. Diria que ele é um paradigma.
Como um movimento que organiza as Olimpíadas Internacionais de Língua Turca atrai, também, os curdos?
De um lado o povo curdo é apenas outro grupo de pessoas e a mensagem de tolerância atrai a eles assim como a qualquer um. Você vê evidências disso; vê que o Movimento está ativo em regiões curdas. Eles têm escolas lá. Na verdade, houve um estudo de caso sobre as escolas do Movimento terem conseguido marginalizar o PKK [Partido dos Trabalhadores do Curdistão] em torno de Mardin. Assim, você vê atividades que são consistentes com a mensagem. Ao mesmo tempo há um certo orgulho na Turquia. Como alguém de fora, li os textos de Gülen e o vi sustentando sultões como ideais, como pessoas a serem imitadas. Ele tem orgulho de seu país. Ele ama o seu país. Eu o vejo como alguém que fala a partir de seu próprio contexto. Ele é turco e acredita que o ramo turco do Islã mantem suas bases espirituais de uma maneira que outras interpretações não fazem. Acredito que ele é muito consciente de que é da Turquia e tem uma responsabilidade por causa disso. A Turquia tem um papel a cumprir e acredito que é muito correto da parte dele se expor e fazer comentários sobra a “Flotilha da Liberdade” e sobre terrorismo porque a voz dele é uma voz de sabedoria. A Turquia precisa de liderança, agora, porque ela tem um papel a cumprir. Gülen é turco, mas tem um papel mundial, também. Ele faz as duas coisas. A Turquia vai ser uma superpotência. Eu, realmente, acredito nisso. Não sou uma cientista política, mas acredito nisso.
Publicado em Today’s Zaman, em 4 de julho de 2010.