Por que a Turquia bombardeia os curdos na Síria
Após ter realizado neste sábado (20) bombardeios aéreos contra alvos curdos na fronteira com a Síria, o governo da Turquia deu início, no domingo (21), a uma incursão terrestre, usando fileiras de tanques de guerra, além da infantaria e de peças de artilharia, na região síria de Afrin.
O objetivo da ofensiva militar turca é fazer com que as forças curdas existentes na faixa de fronteira recuem pelo menos 30 quilômetros na direção do interior da Síria. O corredor que a Turquia pretende abrir com esses ataques inclui cidades estruturadas e populosas como Afrin e Manbij, dentro do território sírio.
A operação militar turca deu novo impulso e novos contornos políticos à guerra que se estende desde 2011 sem solução na Síria.
Politicamente, a ofensiva mexe com interesses da própria Síria, além dos EUA e da Rússia. Ela também impõe um pesado revés à pretensão curda de construir um Estado próprio e soberano – ou pelo menos com alto grau de autonomia administrativa – na região.
Do ponto de vista humanitário, existe o temor de que o recomeço da guerra, num novo front, cobre um preço ainda mais pesado da população civil que, desde 2011, sofre com ataques das forças do governo sírio, de rebeldes, de potências estrangeiras e do grupo terrorista Estado Islâmico.
Para entender todas as implicações deste novo momento do conflito na Síria , é preciso, primeiro identificar os atores envolvidos. Os curdos são os pivôs da ação. Mas, além deles, há outros interesses em jogo.
O peso da questão curda
A questão central neste conflito é a reivindicação dos curdos de criar um Estado próprio numa vasta extensão territorial que inclui partes da Síria, do Iraque, do Irã, da Turquia e da Armênia.
Os curdos constituem a maior população sem Estado do mundo. As estimativas demográficas variam entre 25 milhões e 40 milhões de curdos espalhados por uma área de 500 mil quilômetros quadrados. Na Turquia eles são 15 milhões e correspondem a um quarto da população local.
Durante a guerra na Síria, forças curdas foram fundamentais no combate ao Estado Islâmico – grupo terrorista que se originou no Iraque e passou a agir de forma estruturada na Síria, de onde comandou ataques terroristas contra alvos em diversas partes do mundo, incluindo os EUA e a Europa.
Os curdos – especialmente por meio da milícia YPG (Unidades de Proteção Popular, em português) – constituíram a principal força de combate ao Estado Islâmico em solo, enquanto potências maiores, como os EUA e a Rússia, agiam sobretudo por meio de ataques aéreos. Foram os curdos que, em junho de 2015, reconquistaram a cidade síria de Kobane das mãos do Estado Islâmico.
Ao longo desse tempo, os curdos receberam apoio americano e se equiparam, se organizaram e se fortaleceram na região. Uma vez debelada a ameaça comum do Estado Islâmico, era uma questão de tempo até que essa vantagem militar curda passasse a ser percebida como uma ameaça pelos Estados nos quais o grupo reivindica terras e autonomia.
“Todos os movimentos curdos estão unidos em oposição ao Estado Islâmico. Ao mesmo tempo, eles permanecem mais do que felizes e preparados em tomar vantagem do enfraquecimento dos governos centrais do Iraque e da Síria, causado pelo Estado Islâmico, para tentar expandir o território que controlam” David Romano Professor da Universidade do Estado de Missouri, em agosto de 2016, em entrevista ao ‘Nexo’
Os curdos são organizados em diversos grupos e partidos diferentes. Na Síria, existem 17 partidos curdos, sendo que o principal deles, o PYD (Partido da União Democrática), é aliado do turco PKK (Partido do Trabalhador Curdo), que, para o governo da Turquia, é um grupo terrorista.
Questão curda cresceu no pós-guerra
A questão da independência curda surge nos tratados assinados após o fim da Primeira Guerra Mundial. Em 1923 é assinado pelos vencedores do conflito o Tratado de Lausanne, liderados por Reino Unido e França. Nele são desenhadas as fronteiras modernas do Oriente Médio, no que antes era o Império Otomano, sem que a população curda receba um território para si.
Desde então, os governos dos Estados constituídos se opõem à criação do Curdistão. Um dos grandes motivos é o petróleo: praticamente todas as reservas da Turquia e da Síria, bem como um quarto das reservas do Iraque, estão em terras que os curdos reivindicam para si.
A etnia curda baseia sua identidade em uma língua e cultura em comum, de uma população que sempre habitou aquela região resistindo à ocupação tribal dos árabes. Embora sejam, em maioria, muçulmanos, os curdos não são identificados com uma religião específica.
Os interesses da Rússia e dos EUA
Uma parte da conta por esse reinício do conflito está sendo passada ao governo dos EUA. Isso ocorre porque, antes da ofensiva turca, o governo americano havia anunciado a intenção de fortalecer as forças curdas para que elas constituíssem um corredor de proteção contra o terrorismo na fronteira entre a Síria e a Turquia.
A iniciativa foi mal recebida pelo presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que viu na estratégia americana um risco contra a soberania da Turquia diante do fortalecimento militar curdo. Erdogan disse que, com isso, os americanos estavam erguendo um “corredor terrorista”.
O papel da Rússia é, por enquanto, menos claro. No início, o governo russo fez advertências contra qualquer ideia turca de ofensiva militar – pois o país é o grande garantidor do atual governo sírio, onde se dá a operação –, mas, em seguida, abriu caminho, pedindo apenas “moderação”.
Para alguns analistas, o presidente russo, Vladimir Putin, estaria percebendo no conflito uma oportunidade de agudizar as contradições entre turcos e americanos. Os dois países são parceiros da Otan, a maior aliança militar do mundo, que defende em várias frentes interesses opostos aos interesses russos.
João Paulo Charleaux
Originalmente publicado em: https://www.nexojornal.com.br/