Por que a Turquia está colocando uma força paramilitar em suas próprias cidades
Quando o estado turco precisou de ajuda para proteger vilas curdas na sua região sudeste no meio dos anos 80 de insurgentes pertencentes ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que é um partido curdo separatista, o então-presidente Turgut Ozal iniciou um sistema de “guarda das vilas”. O controverso sistema, estabelecido em 1985, recrutava aldeões – a maioria curdos eles mesmos – para atuarem como uma força paramilitar, tanto para proteger suas vilas quanto para auxiliar as forças armadas turcas. O estado turco manteve o sistema no lugar desde então, apesar da oposição tanto de grupos dos direitos humanos e de dentro do parlamento turco.
O número de guardas das vilas estava por volta dos 90.000 nos anos 90. Apesar de o recrutamento ter diminuído de velocidade durante os anos 2000 – um período relativamente pacífico – a partir da eclosão de um novo conflito em agosto de 2015, o recrutamento começou a ganhar velocidade mais uma vez. Infelizmente, não há dados precisos quanto ao número de recrutas hoje. As estimativas mais recentes do Diretório Geral de Administração Provincial são de fevereiro de 2014. De acordo com esses números, em 2014 existiam 47.800 guardas das vilas temporários além de 25.000 guardas das vilas voluntários em 22 províncias.
Com o surto de guerra renovado entre o PKK e as forças armadas turcas, o então Primeiro-Ministro Davutoglu organizou uma reunião com representantes das guardas das vilas. Logo após a reunião, foi divulgado na mídia que novos guardas das vilas seriam recrutados e que os guardas das vilas existentes receberiam um aumento. Imediatamente após a conferências de Davutoglu, a primeira-dama Emine Erdogan realizou outra reunião com guardas das vilas mulheres no Palácio Presidencial e lhes desejou boa sorte para sua “luta contra o terrorismo”.
Durante o final de 2015, quando as operações das forças armadas turcas se espalharam para áreas urbanas do sudeste, “guardas das vilas” começaram a serem “vistos” nas cidades pela primeira vez. Em janeiro de 2016, os jornais noticiaram que guardas das vilas estavam lutando ao lado das forças armadas na Praça Diyarbakir. De acordo com as reportagens, esses guardas estavam sendo trazidos para lá de outras províncias e enviados para passarem um pente fino em ruas que as equipes especiais do exército não conseguiam acessar. A mídia local frequentemente relatava que na operação no distrito Sur central de Diyarbakir, “policiais, soldados e guardas colaboravam”. Na verdade, durante esse período, os guardas das vilas começaram a praticamente substituir a polícia em muitas cidades do sudeste.
Em abril de 2016, um novo conceito foi introduzido: guardas das cidades(!) Primeiro, em Hakkari, o governo provincial anunciou que 224 guardas seriam contratados para trabalharem com a Força Policial local. Sirnak, Diyarbakir, Mardin e Sanliurfa seguiram esse exemplo, e acabaram empregando um total de 2.394 guardas das cidades. Depois da tentativa fracassada de golpe de 15 de julho de 2016, algumas municípios e cidades no oeste da Turquia se juntaram e começaram a contratá-los também. O jornal Yeni Safak noticiou que além de uma reestruturação da força policial, das Forças Armadas e serviços de inteligência turcos, o governo estava se preparando para contratar mais ‘guardas’ e ‘vigilantes noturnos’. O jornal também relatou que as responsabilidades de ambos os grupos seria expandida.
Um decreto emitido em outubro de 2016 alargou a autoridade dos guardas das cidades. De acordo com o decreto, os recém-formados paramilitares receberiam armas e equipamentos pesados, receberiam um salário mínimo e teriam benefícios de previdência social.
Em 2017, o governo aposentou mais de 18.000 guardas das vilas com idades de 45 a 50 e contratou mais de 25.000 novos guardas com idades de 30 ou mais jovens para ‘rejuvenescer’ suas fileiras.
Esses novos guardas não foram contratados apenas para protegerem os municípios e cidades; eles foram contratados para destruí-los. O sistema de guardas das vilas dos anos 80 está agora distendido bem além de seu propósito original. O novo sistema de guardas é tanto político quanto financeiro.
Estados apenas lançam mão de operações paramilitares quando seus exércitos e soldados oficiais são insuficientes. Exemplos disso podem ser vistos em muitos países por todo o mundo, do Iraque à Guatemala. Na Turquia, os guardas das vilas foram usados nessa capacidade também.
Crimes cometidos pelos guardas receberam, no passado, uma cobertura extensa na mídia. E desde sua incepção, muitos governos turcos prometeram aposentar o sistema de guardas antes das eleições, mas decidiram manter o sistema intacto depois que foram eleitos. O presente governo do AKP seguiu o exemplo deles. Não apenas não removeram o sistema, mas agora estão construindo um exército de guardas para uma nova guerra.
Contudo, a história nos ensina que estruturas paramilitares como essa não são fáceis de se livrar, mesmo depois que a guerra acaba. E se eles se rebelarem, não apenas atacam seus inimigos; atacam membros inocentes do público e algumas vezes seus criadores políticos também.
Nurcan Baysal
Fonte: https://ahvalnews.com/