O caso peruano ajudaria entender a queda da Turquia para a autocracia
Na aparência, a Turquia tem todas as instituições necessárias para uma democracia: uma constituição, um parlamento, partidos políticos e membros do parlamento eleitos e tem um judiciário “aparentemente independente”. Ela tem uma mídia “aparentemente livre”. Por um tempo já, eles existem só para salvar e polir a imagem de uma ordem onde apenas um homem decide tudo.
As prisões do país estão cheias de jornalistas, acadêmicos, intelectuais e políticos, que são demonizados apenas por causa de seus pensamentos de oposição. Por um lado, o Presidente do Tribunal Constitucional, que se supõe se oporia a todas essas tentativas em nome da Constituição que assegura a democracia e as liberdades, está se curvando perante o presidente. Por outro lado, os membros da mídia, que supõe-se defenderiam a justiça e as liberdades e fossem a voz dos grupos vitimizados, estão agindo como os três macacos sábios. Em vez de obterem a gratidão do público ao defenderem a verdade e a justiça, estão na tentativa de garantir um convite para as recepções dadas no palácio, ou de serem levados a bordo do avião do presidente. Por que? Por que todas essas instituições e essas grandes personalidades se desgraçaram e se anularam uma a uma? Que tipo de mecanismo criou essas instituições e personalidades para que se transformassem em nada?
Mais ou menos, todo mundo sabe com o pé da mídia desse mecanismo funciona e como a mídia parcialmente livre foi terminada, porque todas essas coisas aconteceram bem na frente dos olhos do público. Não é um segredo como a associação de mídia for formada com o dinheiro de comissão recebido dos chefes de empresas leais ao governo; como as transmissões da mídia opositora são tomadas sob controle com instruções por telefone do tipo “Olá, Fatih!”; como os patronos da mídia são repreendidos através de ligações telefônicas; como as instituições de mídia que continuaram a publicar opiniões de oposição foram silenciadas através dos assim chamados administradores nomeados pelo governo; e como os membros da mídia que tentaram permanecer equidistantes a tudo isso foram anexados à mídia do pool. Existem, é claro, algumas pistas sobre como, em perfeito uníssono, todas as centenas de escritores e jornais publicam exatamente as mesmas manchetes e ousam defender mentiras óbvias tais como as notícias falsas de Kabatas e como o exército de trolls, consistindo de milhares de pessoas estão sendo dirigidos, mas os próprios detalhes de revirar o estômago sobre esse mecanismo certamente serão revelados no futuro.
No campo da política, é mais ou menos conhecido como os nomes dos que já fizeram parte da oposição, tais como Kurtulmus, Soylu, Bahçeli, Destici são intimidados até a submissão e que mudaram suas opiniões em 180º, mas, com certeza, haverá alguns detalhes repugnantes dos quais ficaremos sabendo mais tarde.
“Está grosseiramente óbvio como o judiciário foi explorado para silenciar Demirtas, o líder do HDP que havia se tornado proeminente com sua oposição influente. Nocautear Baykal com o golpe de uma gravação em vídeo, usar o bastão do judiciário como uma arma de ameaça para Kiliçdaroglu, a promoção à Presidência ao estilo turco e contornar o Parlamento com KHKs (decretos de lei emergenciais), é tudo parte do mesmo jogo.”
Ainda assim, que tipo de mecanismo está fazendo o judiciário ser subserviente às ordens de um regime de um homem só? Como é que pode que o presidente do Tribunal Constitucional, Zühtü Arslan, que costumava ser conhecido por suas opiniões que promoviam liberdades, esquece todos os pensamentos que estava defendendo ainda ontem e toma a posição de “ordenar armas” na frente do presidente?
O Exemplo do Peru nos descreve
Enquanto eu procurava por um exemplo que mostre que as instituições sustentando a democracia existem apenas na aparência e que suas funções de fato foram anuladas, cruzei com o caso do Peru na América Latina. O Peru entrou na literatura das ciências políticas como um exemplo marcante de onde um líder fez um golpe contra seu próprio governo (autogolpe) e capturou toda a autoridade sob seu monopólio. A respeito desse aspecto, algumas pessoas comparam a tentativa de golpe de 15 de julho, que desativou a oposição e preparou o caminho para o regime de um homem só na Turquia ao autogolpe de Fujimori em 1992. O aspecto mais marcante do caso peruano, que não foi destacado até agora são os métodos que Fujimori usou para desativar as instituições indispensáveis da democracia tais como o judiciário, o parlamento e a mídia.
Como é o caso na Turquia hoje, havia juízes, tribunais, partidos políticos e uma mídia ativa e viva no Peru. Contudo, nenhum deles estava realizando os deveres que normalmente se espera que realizem em regimes democráticos.
“A razão por detrás disso tudo; a razão de porque juízes não estavam se comportando como juízes, por que jornalistas não estavam agindo como jornalistas, por que políticos oposicionistas não estavam atuando como a oposição foram compreendidas quando Fujimori perdeu seu poder de governar e escapou do país. Os documentos revelados chocantemente mostraram que o país havia na verdade sido governado pelo chefe do serviço de inteligência do Peru (Servicio de Inteligencia Nacional – SIN), Montesinos, na verdade não pelo próprio Fujimori.
Capacidade Montesinos
Montesinos iniciou sua carreira como um oficial do exército e foi processado por vender documentos confidenciais para a inteligência americana. Seu nome completo era Vladimiro Lenin Ilich Montesinos Torres. Sua família comunista havia escolhido especialmente para ele o nome Lenin. Durante o regime de junta esquerdista nos anos 70, Montesinos foi promovido para ser o vice do General Edgardo Mercado Jarrín, que estava governando o país tanto como Primeiro-Ministro quanto Chefe de Estado-Maior. Por causa de suas relações clandestinas com a Inteligencia Americana, a junta esquerdista o dispensou do exército e o colocou sob detenção por dois anos. Mais tarde, Montesinos buscou uma carreira na advocacia e conseguiu um diploma em direito por meios fraudulentos. Depois que ele conseguiu entrar na área, ele começou a fazer a defesa de traficantes de drogas e de soldados envolvidos em tráfico de drogas. Quando foi eleito em 1990, Fujimori nomeou Montesinos – que também tinha servido Fujimori como seu advogado – primeiro como seu conselheiro, depois como o chefe do serviço de inteligência.
Tudo que Fujimori tinha feito no país estava sendo conduzido sob o conhecimento de Montesinos. Contudo, quando tudo foi revelado durante as audiências no tribunal, Fujimori disse que ele não sabia nada sobre muitas coisas que seu chefe de inteligência havia feito em seu nome.
Para deixar os opositores de joelhos e ganhar a lealdade dos oficiais em posições críticas, Montesinos havia desenvolvido alguns métodos bem-sucedidos. Ele estava os pondo sob seu controle ou por intimidação ou lhes prometendo posições elevadas no governo ou registrando suas vidas privadas para os chantagear ou resolver seus problemas com a burocracia. Enquanto isso, Montesinos bolou um sistema de propina e conseguiu desativar os pesos e contrapesos da aparente democracia existente ao comprar jornalistas, políticos e membros do judiciário. Normalmente dizem que a propina não tem documentação. No sistema que Montesinos havia posto em funcionamento, contudo, ele fez recibos para cada propina que pagou. Todos que ele pagou propina estavam assinando um papel ditando as condutas que realizariam em troca. Montesinos estava também gravando os momentos desses contratos.
Como era girada a roda do regime absoluto?
As pessoas que mais tarde examinaram esses documentos quando foram revelados ficaram sabendo de quem era necessário apoio para destruir a democracia a partir de dentro; o que tinha que ser feito para comprar essas pessoas e o preço de cada um desses indivíduos.
“De acordo com a tarifa peruana, a propina mais alta tinha sido paga para a mídia, especialmente para as empresas de televisão. Em seguida vieram os políticos, que foram seguidos pelos membros do judiciário. A propina paga para um proprietário de um canal de televisão, por exemplo, foi cem vezes mais que a quantidade paga para um político. A realidade, revelada por esses registros de propina, estava mostrando que a mídia – particularmente os canais de televisão, que têm o impacto maior na influência da sociedade – era vista como a instituição mais crítica usada para destruir a democracia.”
“A informação é como um remédio, não podemos sobreviver sem ela,” esse oficial chefe de inteligência de Fujimori estava dizendo. Ele estava grampeando as comunicações telefônicas tanto dos opositores quanto dos apoiadores. Em sua sala no SIN, ele estava assistindo a gravação ao vivo do palácio presidencial, do parlamento, salas de audiência, centros da cidade, aeroportos e muitos pontos secretos. Ele estava usando esquadrões da morte contra os oficiais de baixo escalão, mas estava considerando dar propina aos de alto escalão como mais econômico. Para manter a subserviência deles contínua, ele estava fazendo o pagamento das propinas em parcelas mensais, em vez de pagar em um montante único. Ele se filmou dizendo: “Esta é apenas uma pequena retribuição por nossa ajuda mútua,” enquanto estava dando propina a um executivo de um canal de televisão.
Seu maior fundo secreto para comprar a lealdade de indivíduos em posições críticas estava vindo do orçamento descontrolado do SIN. Entre 1990 e 2000, quando Fujimori e Montesinos estavam governando o país juntos, o orçamento alocado para o SIN aumentou em 50 vezes. Mais de dois terços desse orçamento era convenientemente usado para esses propósitos. Ele não era obrigado a prestar contas de seus gastos, e ainda mais, ele também podia receber transações não registradas do Ministério do Interior e do Exército. Ele também estava acumulando dinheiro de atividades ilegais tais como corrupção de licitações públicas, contrabando de armas e peculato.
Pagar propina não apenas para os opositores mas também para o seu próprio primeiro-ministro
O dinheiro pago a políticos em propina estava mudando entre 5 e 20 mil dólares por mês. Ele estava pagando propina não apenas para os políticos opositores mas também para os partidários. Por exemplo, durante as audiências no tribunal, o último primeiro-ministro de Fujimori, Federico Salas, confessou que recebia um pagamento mensal extra de 30 mil dólares de Montesinos. Houve muitos políticos opositores que aceitaram se transferir para o partido de Fujimori em troca de propina.
As propinas dadas ao Tribunal Constitucional e a membros de outros tribunais superiores estavam mudando entre 5 e 10 mil dólares por mês. Essas quantias eram três ou quatro vezes mais do que seus salários mensais.
As propinas dadas aos diretores de imprensa também foram marcantes. Foi revelado que o SIN havia pago 1 milhão de dólares em propina ao diretor do jornal Expresso, e 1,5 milhão de dólares para um jornal chamado El Tio em uma duração de 2 anos (em parcelas mensais de 60.000 dólares).
Controlar os canais de TV era a questão mais crítica
O canal de TV estatal já estava sob controle de Montesinos. Ele estava determinando as políticas de transmissão dos 5 canais restantes por meio de pagamentos de propina. Ele estava pagando a mais alta quantia de propina (1,5 milhão de dólares por mês) para o Canal 4. E ainda mais, o Canal 4 e Montesinos haviam assinado oficialmente um acordo sobre controlar o editorial das notícias como um todo. No total, ele estava pagando 3 milhões de dólares por mês para 5 canais de TV e estava mantendo o controle editorial de todas as notícias relacionadas a questões políticas críticas.
Em um dos vídeos, ele estava contando que havia assistido todas as transmissões de notícias no canal e preparado um relatório sobre elas para o seu proprietário. Ele estava até oferecendo o serviço de agentes do SIN como pesquisadores. À parte dos pagamentos diretos, ele também estava usando os anúncios das empresas governamentais como isca para a mídia. Ele estava ajudando a resolver os problemas legais que a mídia enfrentava, enquanto dava casas e carros como presente para alguns nomes proeminentes. Favores como encontrar trabalhos para cônjuges e fornecer apoio para suas crianças para terem uma educação no estrangeiro estavam entre os seus métodos de comprar influência.
Como o chefe do serviço de inteligência, ele era o que tomava as decisões sobre promoções de oficiais do exército. Apenas os que juravam lealdade a ele e Fujimori podiam ser designados a posições mais altas. Na maioria dos casos, não aqueles que eram competentes e merecedores de sem trabalho, mas aqueles que eram fracos e respondiam às suas ordens com “Sim, senhor!” estavam se destacando. Todos os oficiais de alta patente em comando foram nomeados por Montesinos, e tinham algum tipo de conexão com ele.
Chantagear com câmeras escondidas
À parte de dar dinheiro como propina, o método mais eficiente que ele usou para tanto os militares quanto para outras áreas foi a chantagem. Agentes do SIN estavam colocando câmeras escondidas em lugares de entretenimento e, com os vídeos filmados com essas câmeras, estava muito facilmente dobrando as pessoas que eram alvo disso à sua vontade.
“Ele estava desgastando os pouquíssimos jornalistas, que mostravam a coragem de criticar o governo em jornais e revistas marginais, ao denunciar eles como ‘terroristas, animais ou traidores’ nas primeiras páginas da imprensa que estava controlando.”
Ele ofereceu pagar 19 milhões em propina para o dono de um canal de TV que estava transmitindo programas que criticavam o governo. Quando o dono da TV rejeitou a oferta de propina, sua cidadania foi revogada pelo governo e ele perdeu todas as suas posses.
Fujimori conseguiu o apoio do público com seu sucesso em dois campos: Na captura de Abimael Guzmán, o líder da organização terrorista Sendero Luminoso (o Partido Comunista do Peru), que causou a matança de milhares de pessoas, e o outro foi colocar economia que ia muito mal em ordem. Durante seu governo inicial, a taxa de inflação diminuiu de 7000% para 10%. Em 1992, ele realizou um autogolpe contra seu próprio governo, fechou o parlamento, suspendeu a Constituição e começou a governar o país com decretos governamentais. Ele estava enfeitiçando o público com sua posição firme e inflexível contra o terrorismo. Portanto, ele venceu as eleições de 1995 que entrou sob essas condições. Em 2000, ele deveria convencer o parlamento a transpor a prevenção constitucional de ser reeleito para o terceiro mandato. Ele controvérsias venceu as eleições, mas conseguiu permanecer no cargo por apenas 3 meses.
A queda de Fujimori foi desencadeada por um canal de TV que ele tinha demonstrado interesse e tentado subornar através de propina. Esse pequeno canal de TV que tinha conseguido ficar fora de sua rede de propinas, deu ignição ao pavio que estourou a tirania que parecera indestrutível. Foi visto no vídeo, transmitido pelo Canal N, que o chefe do serviço de inteligência, Montesinos, estava dando 15 mil dólares para o parlamentar opositor Alberto Kouri, e em troca, ele estava falando para o parlamentar deixar o seu partido e começar a apoiar Fujimori. Em outra gravação em vídeo, ele estava prometendo pagar um extra de 10 mil dólares por mês para o membro do tribunal constitucional e o Chefe do Alto Conselho das Eleições. Como um resultado dessas transmissões, Fujimori fugiu para o Japão. No Peru, ele foi acusado de crimes de propina, assassinato e violação da constituição. Mas, porque o Japão rejeitou extraditar Fujimori, ele permaneceu no Japão. O chefe do SIN, Montesinos, também, fugiu do país. Contudo, ele foi capturado na Venezuela, trazido de volta para o Peru e levado para o tribunal. Juntamente a ele, um total de 1600 pessoas dentre os juízes, políticos e jornalistas, que haviam participado de sua rede de propinas, também apareceram perante o tribunal.
“Havia duas razões do porque ele estava filmando as pessoas para quem dava propina: Primeiro, para usar essas gravações contra qualquer um que se voltasse contra ele. A segunda, para impedir que Fujimori o dispensasse de seu cargo. Por meio dessas filmagens, ele poderia destruir instantaneamente o chefe do estado. Fala-se que ele tinha cerca de 20 mil de filmagens como essas.”
Em sua declaração de defesa, Montesinos alegou que é uma pessoa patriótica e que fez tudo que tinha feito para proteger sua terra natal contra os terroristas. Contudo, foi revelado que ele tinha mais de 200 milhões de dólares em contas no estrangeiro. A promotoria peruana determinou que Fujimori havia desviado 600 milhões de dólares no total.
A maioria desses esquemas, tramados e conduzidos no Peru, deve ser muito familiar para os que vivem na Turquia hoje em dia. Não há dúvidas, quando a tampa for retirada, todos os truques sujos, as barganhas feitas com poderes obscuros, dinheiros desviados sob o pretexto de amor pela terra natal e pela religião, virão à luz. E talvez no dia em que tudo for revelado, será entendido que o caso de corrupção de 17 a 25 de dezembro de 2013, os caminhões pegos da agência de inteligência (MIT), as instruções por telefone do tipo “Olá Fatih!” à mídia, o desfalque de preciosas terras e propriedades, as Mercedes no valor de 1 milhão de liras turcas dadas ao chefe dos Assuntos Religiosos, a fátua (permissão religiosa) de Hayrettin Karaman alegando que corrupção não é roubo, a formação de um pool de mídia por meio de concursos públicos são, na verdade, apenas a ponta do iceberg.
Por ABDULHAMIT BILICI
Fonte: http://www.platformpj.org