É hora de dar um basta a Erdogan
O governo turco, dirigido por seu líder mais repressor em quase um século de história republicana, quer que se acredite que 265 jornalistas presos e 105 procurados, muitos deles altos editores e repórteres investigativos veteranos, com anos de experiência na mídia, são de fato terroristas e conspiradores de um golpe de Estado.
É isto que o presidente Recep Tayyip Erdogan e seus propagandistas dizem ao mundo, que nenhum jornalista está atrás das grades na Turquia pelo que escreveram, comentaram ou afirmaram. E, no entanto, as acusações que se viram até agora não revelam qualquer prova, exceto artigos publicados, comentários em programas de TV ou mensagens em Twitter e Facebook. É cristalino que o regime islâmico de Erdogan está determinado a dizimar o pensamento crítico, silenciar a crítica legítima e sufocar o direito de divergir.
A repressão não se limita à imprensa e aos jornalistas. O regime declarou da noite para o dia que um terço de seus diplomatas (quase 500 servidores no Ministério de Relações Exteriores da Turquia) e 30% de seus juízes e promotores (bem mais de quatro mil) também seriam terroristas ou estariam associados a grupos terroristas, e muitos deles foram presos mediante acusações falsas. Ao todo, cerca de 50 mil pessoas foram colocadas atrás das grades nos últimos dez meses, inclusive professores, sindicalistas, médicos, artistas, cantores e músicos.
O governo demitiu 140 mil funcionários públicos por meio de acusações fabricadas e sem qualquer inquérito administrativo ou procedimento judicial sob a lei de emergência declarada após a tentativa frustrada de golpe em 15 de julho de 2016. Esta deu ao regime de Erdogan o pretexto para transformar a Turquia de uma democracia parlamentar em um regime islâmico autoritário controlado por um homem só e sua família. Há crescente evidência de que a tentativa de golpe foi fabricada pelo presidente Erdogan e a cúpula dos setores militar e de inteligência para justificar perseguição em massa e transformar a característica secular e democrática do Estado turco.
A tortura em massa e o tratamento desumano de vítimas das detenções e prisões na Turquia foram bem documentados pelas principais organizações de direitos humanos, tais como Anistia Internacional e o Human Rights Watch, e registradas em relatórios das Nações Unidas e os corpos de monitoramento do Conselho Europeu. Em um documento altamente crítico sobre a Turquia, que foi apresentado na 33ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em junho de 2017, David Kaye, que é o relator especial da ONU para a promoção e a proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, conclamou o governo turco a libertar imediatamente jornalistas, escritores, juízes e acadêmicos, que estão presos sob a legislação antiterrorismo e decretos emergenciais.
A perseguição em massa contra grupos críticos e vulneráveis na Turquia visou sobretudo a membros do movimento Hizmet — um grupo cívico popularmente conhecido como o movimento Gülen. Isso porque foi inspirado no renomado acadêmico Fetullah Gülen, que há décadas defende o diálogo inter-religioso e intercultural, educação laica, contribuição de comunidades e ação de caridade. O governo turco lançou todo tipo de acusação absurda contra Gülen, de terrorista a conspirador de golpe, sem apresentar uma única prova. Os indiciamentos contra ele estão repletos de teorias da conspiração, inclusive o encontro de Gülen com o Papa João Paulo II em 1998, como parte de seus esforços de diálogos inter-religioso. Erdogan publicamente rejeitou a ideia de diálogo entre cristãos e muçulmanos, e demonizou o Papa Francisco e o Mar Sagrado repetidamente em seus discursos na campanha de abril.
Gülen, um clérigo bem respeitado e rígido opositor de grupos religiosos violentos, foi declarado o inimigo número um de Erdogan, depois que ele publicamente criticou, em dezembro de 2013, o seu governo por corrupção disseminada de bilhões de dólares, incriminando Erdogan, membros de sua família e aliados políticos e parceiros comerciais. Também irritou o presidente turco o fato de Gülen atacar fortemente as políticas de Erdogan de armar e financiar grupos jihadistas na Síria, incluindo a al-Qaeda e o Estado Islâmico para derrubar o presidente sírio e substituí-lo por uma figura islamista.
Os longos tentáculos de Erdogan chegaram agora a outros países onde vivem comunidades turcas e a agências governamentais, inclusive de inteligência, para oprimir, intimidar ou mapear o perfil de membros do movimento Gülen e outros críticos. Erdogan afirmou publicamente que o movimento Gülen não tem direito à existência, prometeu caçá-los onde estiverem em países estrangeiros. É hora de denunciar e constranger o governo turco pelo que tem feito e dizer basta a Erdogan.
POR ABDULLAH BOZKURT
Abdullah Bozkurt é jornalista exilado e presidente do Stockholm Center for Freedom, grupo de direitos humanos que monitora violações na Turquia
Originalmente publicado em: oglobo.globo.com