O futuro da Turquia após o referendo
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, venceu no mês de abril um referendo histórico sobre a revisão constitucional que reforça seus poderes, uma votação determinante para o futuro do país. Em total foram propostas 18 alterações à constituição e a mais importante era a que determina a passagem do sistema parlamentar para o presidencial.
Com esta vitória, Erdogan passa a ser o detentor de um poder consideravelmente reforçado e poderá, em teoria, ficar no cargo até 2029. O executivo ficará concentrado nas mãos do presidente e o posto de primeiro-ministro desaparecerá. Sem contrapoder, este sistema presidencial reúne um poder sem precedentes nas mãos de um só homem. Com certeza o resultado da consulta influenciará no futuro das relações com a União Europeia, na questão curda e na evolução das dinâmicas sociais. Mas para os próprios turcos essas questões externas irão fazer pouca diferença, uma vez que o referendo aprova projetos antidemocráticos elaborados pelo Presidente Erdogan e cria uma base legal para seu futuro.
Turquia em turbulência
Há cinco anos a Turquia vem perdendo seus valores democráticos. Eleito como primeiro ministro em 2002, Recep Tayyip Erdogan foi um dos símbolos de liberdade de expressão, das reformas para fortalecer a democracia e da aproximação com União Europeia. Seus primeiros anos no poder foram de paz, trazendo estabilidade e desenvolvimento econômico ao país.
A situação mudou a partir da terceira eleição, quando a centralização do poder começou a tomar forma. O povo saiu às ruas em 2013 e as manifestações populares marcaram um ponto de quebra na recente história da Turquia. Com mais de uma década no mandato, Erdogan não quis largar o poder, entrou na luta ameaçando a sociedade, mudou a legislação judiciaria e “exterminou” a separação dos poderes, um dos pilares da democracia. Ao perseguir a mídia, conseguiu dominar os veículos de comunicação do país e fez propaganda dos benefícios individuais usando a máquina do estado. Com um grande escândalo de corrupção incluindo quatro ministros e sua família, Erdogan decidiu polarizar o povo, chamando os divergentes de traidores e até terroristas.
Perseguição e expurgos em massa
A partir desse momento o governo começou a perseguir as pessoas e expurgá-las dos cargos públicos. Os empresários foram ameaçados e alguns deles presos. Erdogan precisava de um arqui-inimigo para validar a sua campanha de autoritarismo e escolheu o Movimento Hizmet como principal alvo, juntamente com os curdos e o partido de oposição. Assim, pediu votos do povo para ganhar mais força frente aos seus “inimigos”. Após manipular o povo e vencer três eleições seguidas, ele se sentiu mais livre para avançar no seu projeto de “caça às bruxas”, que estava em andamento desde as manifestações. A tentativa de golpe em 15 de julho de 2016 foi “um presente de Deus” declarado por Erdogan para fazer uma limpeza em massa no país.
Até hoje quase 150 mil funcionários foram expurgados e quase 100 mil foram detidos, a maioria sendo policiais, militares, professores, acadêmicos, juízes, advogados, promotores, políticos e empresários. Com 231 jornalistas presos, a Turquia se tornou a maior prisão do mundo para a imprensa livre. Acusados de serem terroristas e sujeitos a torturas nas cadeias, muitos inocentes tiveram que sair de um país à beira de uma ditadura. Erdogan queria legalizar seu poder e se tornar o homem-forte no país através de um referendo, e infelizmente conseguiu alcançar o seu objetivo.
Mudança na política externa
Quando Erdogan chegou ao poder em 2002, a política externa da Turquia foi trocada por uma agenda positiva, colocando em prática a estratégia “zero problemas” com a vizinhança, que levou a uns avanços na questão da adesão à União Europeia, como prometido. As reformas internas ajudaram o crescimento do papel da Turquia no cenário internacional, tanto no campo político quanto no econômico. Com sua democracia estabelecida, economia crescente e diálogo desenvolvido com o mundo ocidental, a Turquia foi considerada um país modelo para outros países muçulmanos. As relações econômicas cresceram, até que as revoltas regionais conduziram Ancara a uma virada estratégica: aproveitar o momento sunita das rebeliões para expandir sua influência no Oriente Médio e se tornar um jogador no campo dos times maiores. Por isso apoiou a Irmandade Muçulmana no Egito e a oposição na Síria. No início a Turquia e as monarquias do Golfo pareciam estar ganhando influência, mas também carregavam o fardo de um fracasso. Isso foi um jogo mal calculado e a Síria era muito mais do que a queda de um ditador.
O apoio da Rússia ao Assad e à aliança dos EUA com os curdos na região trouxeram o fim dos sonhos de Erdogan. A abatimento do caça Russo feito pela Turquia fortaleceu a posição da Rússia no território e empurrou a Turquia para fora da equação. Para criar um espaço de autonomia e uma barreira à formação de um bloco curdo na Síria, a Turquia entrou na guerra, mas foi forçada a retirar suas tropas logo após o acordo entre Rússia e EUA sobre a união dos curdos. Hoje em dia, o pânico em Ancara está na concretização de uma grande zona curda, estilhaçando o território sírio e conquistando legitimidade internacional ao ponto de garantir sua independência da Turquia.
Quando ele perdeu o jogo na Síria, Erdogan quis aproveitar a posição geopolítica da Turquia criando uma rixa entre o Bloco Oriental e o Bloco Ocidental. Por esse motivo realizou visitas consecutivas à Rússia e à Europa fazendo serenatas ou questionando a credibilidade da OTAN. Ninguém caiu na essa armadilha e o consideraram um líder impulsivo e não confiável. Aliás, as ameaças e os discursos duros de Erdogan contra os países europeus mudaram o caráter da política externa para “zero vizinhos, zero problemas”, e no final das contas a Turquia foi o maior perdedor da região.
Guerra ou paz com curdos?
Um século depois, o Oriente Médio novamente se tornou um palco de ensaio dos superpoderes. Neste cenário, a Turquia está sendo isolada e está perdendo seu espaço na mesa de negociações. Não há muitas opções para o governo turco além de aceitar a formação de um país curdo na fronteira com a Síria. Desde a ruptura da trégua histórica com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) em 2015, o sudeste da Turquia mergulhou numa espiral de confrontos entre as forças turcas e os separatistas curdos. A ofensiva militar de Ancara foi redobrada com uma repressão maior contra os círculos políticos e midiáticos pró-curdos, acusados de atividades terroristas vinculadas ao PKK. Mas com a vitória apertada do ‘sim’, Erdogan poderá se ver obrigado a adotar um enfoque mais conciliador em relação à questão. Contudo, Erdogan descartou os políticos curdos do parlamento mandando-os para a prisão e conseguiu controlar os curdos que vivem na Turquia, retomando o diálogo com o líder curdo preso, Abdullah Ocalan.
Que futuro com a Europa e os EUA?
Quando recebe uma crítica, Erdogan mostra a carta dos ‘refugiados sírios’ para os líderes europeus. As relações entre a Turquia e a União Europeia (UE) se degradaram muito na reta final da campanha, quando Erdogan acusou alguns países europeus de “práticas nazistas”. Erdogan indicou que a candidatura da Turquia à UE, em ponto morto há anos, será colocada “sobre a mesa” depois do referendo. Também reativou o debate sobre a restauração da pena capital, um limite para Bruxelas. A tática consistente de atacar constantemente a UE visando a política interna já atingiu seu limite. A chanceler Alemã já declarou a necessidade de procurar uma base militar alternativa a Incirlik, que é a base principal da OTAN na região.
O encontro de Erdogan com Trump em meados de maio (2017) foi uma declaração do fim da aliança. Uma semana antes da sua visita, Trump aprovou o envio de armamento aos curdos para a combate contra o Estado Islâmico. Na realidade, para Erdogan, existem dois assuntos mais importantes do que perder a aliança com os EUA. O primeiro é a extradição de Gulen, que pode ajudar ele a controlar seu povo mais firmemente; e o outro é salvar o empresário iraniano Reza Zarrab do julgamento nos EUA, que pode revelar seu esquema de lavagem de dinheiro em escala internacional.
Reconciliação ou polarização?
Erdogan está viciado no poder e decidido a manter seu domínio no país a qualquer custo. A sociedade turca se polarizou nos últimos anos em torno da figura dele. Durante a campanha do referendo, o presidente demonizou seus opositores, acusando-os de fazer uma aliança com os terroristas e os golpistas. Erdogan vence, mas no final, metade do país o ama e a outra o detesta. Daí vem a origem da crise da Turquia moderna. O que ele mais teme é uma nova onda de revoltas. Por isso não deixa ninguém protestar e mantém seus fanáticos mais afiados.
O regime de Erdogan ainda pode ser considerado uma autocracia e com apoio de organizações mafiosas e grupos religiosos. Mas cada dia mais o país está progredindo para um mandato típico Baath e ainda está formando e alimentando movimentos radicais no país.
Após o referendo, o destino da Turquia foi sincronizado com o destino de Erdogan. O ponto que chegamos mostra como a democracia é frágil e que o que aconteceu na Turquia pode acontecer em qualquer país. O avanço de Erdogan usando a democracia como uma ferramenta e sua queda no futuro é um caso de estudo para acadêmicos e uma lição para o mundo.
Por Kamil Ergin
Jornalista e Editor Voz da Turquia