Referendo afasta Turquia de valores democráticos
A contestada vitória do referendo que muda o sistema político da Turquia, de parlamentarismo para uma espécie de superpresidencialismo, representa uma derrota para a democracia. Convocada pelo presidente Recep Tayyip Erdogan, a consulta autoriza o país a alterar 76 artigos da Constituição de 1982 para reforçar a autocracia que já existe na prática. Com a vitória do “sim”, Erdogan acumulará poderes, tais como a autoridade para indicar ministros, juízes e servidores públicos, editar decretos e declarar estados de emergência, independentemente dos poderes Legislativo e Judiciário, que se tornam secundários em relação ao Executivo.
Segundo resultados oficiais, Erdogan perdeu nas principais cidades do país, inclusive Ancara e Istambul, e venceu em pequenos municípios do interior, onde se concentra uma população mais religiosa e conservadora. No cômputo geral, o “sim” venceu com 51,3%, contra 48,7%, numa apertada margem.
O desfecho do referendo causou sobressaltos na oposição e em observadores internacionais independentes, como a Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE) e o Conselho da Europa, que denunciaram uma série de evidências de manipulação, tais como a contagem de até três milhões de cédulas sem carimbo da autoridade eleitoral — volume bem maior do que a margem de vitória do “sim”.
Além disso, o referendo ocorreu num clima de intimidação gerado pela decretação do estado de emergência, após a tentativa fracassada de golpe militar no ano passado. A insurgência deu ao presidente turco a desculpa para aumentar a repressão, que já vinha numa curva crescente nos últimos anos, contra grupos dissidentes. Na sequência do golpe, o regime suprimiu liberdades individuais, demitiu ou exonerou cerca de 130 mil pessoas “suspeitas” e prendeu arbitrariamente 45 mil. Esse quadro de exceção contaminou o pleito.
Ontem, Erdogan foi parabenizado por telefone pelo presidente americano, Donald Trump, num sinal de que Washington se sente confortável com um regime forte na região. O telefonema, no entanto, causou mal-estar generalizado. Já a relação entre Ancara e Bruxelas continua azedando, desde a resposta de Erdogan à tentativa de golpe, quando ensaiou uma aproximação com o russo Vladimir Putin. Recentemente, o presidente turco fez duras críticas aos governos de Holanda e Alemanha, acusando-os de nazismo.
Com Erdogan, a Turquia parece caminhar decididamente para um regime opressivo. Externamente, o país continua um membro da Otan e desempenha um papel estratégico na contenção do fluxo de refugiados da Síria para a UE. Mesmo assim, Bruxelas deve suspender o processo de adesão do país ao bloco. Internamente, Erdogan terá que administrar uma vitória contestada e suspeita, numa Turquia dividida entre valores ocidentais e a tradição muçulmana.
Fonte: http://oglobo.globo.com