Asli Erdogan: ‘ A Turquia é hoje um grande império do medo ’
RIO e ANCARA – No telefone, Asli Erdogan pergunta, em português, “tudo bem?”, ao saber que a repórter é brasileira. A escritora, de 49 anos, viveu dois anos no Rio, que retratou no romance “A cidade do manto vermelho”. Ela veio fazer um doutorado de Física, mas abandonou a vida acadêmica e se sustentou dando aulas de inglês. Foi quando decidiu dedicar-se às letras. Apesar de nunca ter voltado, pensou muito na cidade no período em que esteve presa.
A senhora viveu no Rio nos anos 1990. Voltou alguma vez?
Nunca voltei. Tive uma relação muito forte de amor e ódio com o Rio. Quando voltei para a Turquia queimei todos os endereços. Sinto falta, mas nunca tive muito dinheiro, e é muito longe. Na cadeia, para minha surpresa, dois lugares me vinham à mente com frequência. Um era Bali, onde passei dois meses. O outro era o Rio. Sentia muita falta. Na prisão não há música, não há cor. Não se pode nem ter um tapete, uma planta. Talvez fosse normal sentir falta dos trópicos: são cheios de plantas, de cor, de sons e cheiros.
Ficou quanto tempo presa?
Quatro meses e meio. Foram 136 dias. E sem ver um juiz. O indiciamento só ocorreu no terceiro mês. Na primeira audiência, fui liberada.
Na prisão, ficou com outras intelectuais e jornalistas?
De início, eles me colocaram na solitária, onde fiquei por cinco dias. Eles disseram que eu só podia optar entre a ala do PKK (Partido Trabalhista do Curdistão) e a dos grupos de esquerda. Fui para a do PKK porque estava lá uma advogada que eu conhecia. Logo depois chegou uma linguista de 70 anos. Éramos as duas intelectuais ali, e as únicas que não eram curdas. Havia 22 mulheres, entre 20 e 70 anos.
E espera ser absolvida?
O processo deve levar um ano, pelo menos. O juiz me livrou da acusação de fazer parte de uma organização terrorista, por falta de provas. Então seria estranho me condenarem por isso. Mas podem me condenar por propaganda (terrorista), o que rende até dois anos e meio de prisão.
Na França, acaba de ser publicada uma coletânea de artigos. Não não teme que possa complicar seu processo?
Foram 18 anos escrevendo artigos para jornais, e nunca nenhum deles se tornou alvo de investigação. Então é melhor que o livro seja publicado, para que todos vejam que não há nada de radical nesses textos.
Vários jornais foram fechados. A senhora acredita ser possível interromper esse processo a curto prazo?
Não há sinal de que as coisas vão melhorar. A mídia está de mãos atadas. Jornalistas e editores dos principais jornais estão com medo. Há 150 jornalistas na cadeia, muitas agências e canais foram fechados.
Sobre a mudança na Constituição que o presidente Recep Tayyip Erdogan está tentando aprovar…
Ele vai conseguir com certeza. Ele tem muito poder hoje.
Isso pode dificultar a situação da imprensa turca?
Seu poder seria apenas legitimado. Não acredito em mudança. Mas espero que, ao assumir em um regime presidencialista (hoje é parlamentarista), ele fique mais tolerante. Na essência, porém, seus poderes não sofrerão uma mudança drástica. Terão apenas uma base mais legal e permanente. Ele ficará no poder por pelo menos mais dez anos.
Os intelectuais europeus têm se mostrado ativos na defesa dos jornalistas turcos. Mas os governos não têm feito pressão. Isso se deveria ao acordo sobre os refugiados sírios?
São 3,5 milhões de refugiados. E, claro, os políticos se preocupam mais com estratégias políticas. Quem se importa com 150 jornalistas presos na Turquia quando se considera a Síria e a crise dos refugiados? Mas eles deveriam, ao menos, ser fiéis ao ideal por trás da União Europeia. A liberdade de expressão e de pensamento é uma parte essencial da democracia.
O véu islâmico está cada vez mais disseminado e há relatos de agressões. A Turquia secular está desaparecendo?
Há uma grande transformação. Mas o secularismo foi imposto pelo Estado, de cima. A maioria da população permaneceu religiosa. O que ocorre hoje é o resultado de cem anos tentando transformar um país muçulmano em um secular, europeizado. Metade do país provavelmente se sentiria mais à vontade em um regime muçulmano, e a outra metade defende o secularismo. Há uma disputa grande entre esses dois lados. Quem é secular também pode ser bastante religioso, e quem é religioso pode ser bastante secular. Não somos inimigos.
O país está voltando a ser visto como perigoso?
Não é o Velho Oeste, mas chegamos a uma época difícil. O clima está terrível, todos se perguntam “o que vai acontecer esta semana?” As pessoas têm medo das bombas, da polícia. É um enorme império do medo.
Os conflitos com os curdos retornaram com o fim das negociações de paz, em 2015. Vários acadêmicos que assinaram um manifesto pela paz foram presos.
Uma das coisas que apoiei nas políticas do AKP e de Erdogan foram os esforços pela paz. Mas, neste momento, tudo parece muito sombrio. Cada dia de guerra reduz a chance de paz. Porque a raiva se acumula. E isso é o que eu temo: que as pessoas comecem a se odiar mutuamente. Nos arriscamos a dizer: queremos paz, mas fomos punidos. O que há de errado em dizer que se quer paz?
A senhora foi escolhida para o Prêmio Bruno Kreisky de Direitos Humanos, na Áustria. Acha que será possível ir à cerimônia, em junho?
Confiscaram meu passaporte duplamente: pela Justiça e pelo regime de exceção. Agora, uma pessoa sob investigação não pode ter passaporte, nem sua família. Isso vai contra os direitos humanos. Nem os militares fizeram isso. Eles invalidaram muitos passaportes, mas nunca da família inteira.
Fonte: extra.globo.com