Fuga da realidade paralela da Turquia
Enquanto eu estava na fila do passaporte no aeroporto de Istambul na noite de 6 de março, pronta para deixar a Turquia por um período indefinido de tempo, não pude evitar lembrar a cena tensa no filme Argo em que seis funcionários consulares passaram pelo aeroporto de Teerã para escaparem do Irã depois da revolução de 1979.
Como uma cidadã cumpridora das leis, eu sabia que não tinha feito algo de errado para ser parada na fronteira. Mas na Turquia ser uma jornalista do grupo de mídia do Zaman era o suficiente para eu ser considerada uma “inimiga do estado”. E eu era a editora-chefe do Today’s Zaman que havia sido brutalmente tomado uns dias antes, rendendo-me uma pena suspensa de prisão por meus tweets criticando o então Primeiro Ministro Ahmet Davutoglu.
Conforme eu estava na fila, contemplei como todos os sinais apontavam para um futuro ainda pior.
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A Turquia já há muito tempo tem sido um lugar difícil para jornalistas, piorando com a repressão contra os protestos no parque Taksim Gezi em 2013 e cada vez mais depois disso.
Mas a desprezível tentativa de golpe em julho desse ano deu ao Presidente Recep Tayyip Erdogan o que ele descreveu como “um grande presente de Deus” ao permitir que ele persiga e expurgue qualquer um a vontade, transformando a Turquia em um completo inferno para todos que não sejam leais a Erdogan.
Graças à franqueza ou o excesso de confiança de Erdogan, ficamos sabendo que o governo não seria capaz de conduzir o expurgo “sob circunstâncias normais”. Conforme ele sugeriu: Expurgos são mais fáceis de conduzir sob um estado de emergência que coloca na gaveta direitos fundamentais.
Em o que pode apenas se descrito como uma caça às bruxas, ao menos 32.000 pessoas foram presas desde então, incluindo professores escolares, acadêmicos, advogados e promotores – até donas de casa. Várias empresas foram confiscadas sem o devido processo. Não há uma garantia de propriedade privada na Turquia pós-golpe. As propriedades da estrela do futebol Hakan Sukur foram confiscadas ao mesmo tempo que o regime draconiano colocava seu pai na prisão.
Enquanto o golpe fracassado ainda espera por uma investigação minuciosa, o governo lançou loucas acusações e algumas pessoas foram ligadas ao golpe sob pretextos espúrios tais como levar notas de um dólar na carteira como se fossem algum tipo de código.
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Atualmente, 120 jornalistas estão atrás das grades. E não tenho dúvidas de que, se eu não tivesse deixado a Turquia naquele dia, estaria atrás das grades como muitos de meus colegas que foram presos sob acusações infundadas de terrorismo.
É assim que o governo opera: O primeiro alvo é qualquer um que é visto como um simpatizante do movimento Gulen. Depois os curdos entram na reta. No entanto, a maioria da intelectualidade turca fecha os olhos para uma opressão massiva como essa principalmente por causa da identidade das vítimas.
Terrivelmente, na ausência de quaisquer evidências confiáveis, eles estão dispostos a aceitar o argumento de Erdogan que o erudito muçulmano Fethullah Gulen seja o arquiteto do golpe. Até alguns políticos europeus parecem prontos para entrarem na onda simplesmente porque “todo mundo diz a mesma coisa”.
A atmosfera generalizada de medo, associada com uma parcialidade contra qualquer um remotamente religioso, transformou a intelectualidade da Turquia em cúmplices implícitos do regime opressivo. Alguns não querem desafiar a narrativa do governo, outros apoiam abertamente expurgos “preventivos” para prevenir crimes futuros.
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Como que a Turquia – um país que com sucesso realizou reformas amplas para a União Europeia uma década atrás – sob o mesmo governo se transformou nesse pesadelo autoritário?
Apesar de eu não ter consciência disso na época, o ponto de virada foram as investigações de corrupção de 2013 que foram interrompidas antes de poderem envolver a família Erdogan. O principal suspeito, o comerciante iraniano de ouro Reza Zarrab, enquanto isso, foi liberado de todas as acusações nos tribunais turcos.
Erdogan, que presumiu que foram os simpatizantes de Gulen dentro do estado que haviam exposto sua roupa suja, começou a travar uma guerra aberta contra o movimento, chamando ele de “estrutura paralela”. E quando Zarrab foi preso nos EUA por violar sanções contra o Irã, Erdogan argumentou que o movimento Gulen tinha comprado o promotor americano e o juiz no caso contra o homem que Erdogan diz ser inocente de qualquer irregularidade.
E é esse caso que é a raiz de tudo que vimos desde então.
Milhões de pessoas aceitaram o argumento que as investigações de corrupção eram na verdade uma tentativa de golpe para derrubar Erdogan, conforme o governo alegou. Desse momento em diante, as fábulas se tornaram acada vez mais bizarras conforme o governo percebia que conseguia sair impune.
Um conto popular na mídia pró-governo tem sido o conto da “mente superior”, que diz que inimigos ocidentais sem nome tentam para a ascensão da Turquia através de meios nefastos.
Depois da decisão da Moody’s de rebaixar a nota da Turquia, um vice primeiro-ministro colocou a culpa disso no movimento Gulen. Na ausência de uma mídia livre para apresentar perguntas de verdade, Erdogan foi além e disse que a Moody’s poderia ser subornada, sugerindo indiretamente que o movimento tinham feito exatamente isso.
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O que o futuro reserva? Até onde o meu próprio caso diz respeito, consegui passar pelo aeroporto em março e agora vivo em Bruxelas, praticamente em exílio. Para mim e meus colegas, o presente nunca pareceu tão sombrio e o futuro nunca pareceu tão incerto.
Após o golpe, meu apartamento sofreu uma batida da polícia e um mandato de prisão foi emitido para mim in absêntia – no mesmo dia que fui barrada de deixar a Bélgica, tirada de um avião porque o governo tinha cancelado o meu passaporte. Mesmo de longe, o governo pode retaliar. Mas pelo menos não estou na cadeia. E enquanto que o preço do exília é bem alto, eu não vejo um jeito em que poderia trabalhar dentro do sistema existente.
Quando vale o seu próprio conforto? Essa é a minha pergunta para essas partes da mídia e intelectualidade turcas que continuam a permitir a opressão da Turquia e esse universo paralelo que Erdogan estabeleceu. Isso vale a verdade? Por hora, na Turquia, esse é o preço sendo pago.
Sevgi Akarcesme era a editora-chefe do Today’s Zaman.
Fonte: http://www.politico.eu