Entrevista da Veja com Gulen: O inimigo preferido
O clérigo islâmico, de pés inchados e voz baixa, é acusado de golpista pelo governo turco, que pede sua extradição dos EUA. Nesta rara entrevista, ele nega querer o poder e denuncia um expurgo político sem precedentes na Turquia
Por Duda Teixeira e Andrea Collares, de Saylorsburg
Para Recep Erdogan, presidente da Turquia, Fetullah Gülen, líder do Hizmet (O Serviço, em turco), é o culpado pela tentativa de golpe de Estado que deixou 300 mortos em 15 de julho passado. O Hizmet é um movimento islâmico com atuação em mais de 180 países. Para os seguidores de Gülen, os gülenistas, esse senhor de pés inchados e voz baixa, que diz passar a maior parte do tempo entre orações e estudos religiosos, é um democrata que prega a modernização da Turquia. Aos 77 anos, Gülen resiste, nos Estados Unidos, a um pedido de extradição que, se concedido, resultaria em prisão perpétua acrescida de 1 900 anos, segundo exigem promotores turcos. Avesso a entrevistas, ele concordou em responder às perguntas de VEJA por escrito e depois recebeu a reportagem para uma rara conversa no seu retiro simples e bem cuidado, cercado por jardins e pequenos lagos, no interior da Pensilvânia, onde vive desde 1999. A seguir, sua entrevista.
O senhor e seus seguidores estiveram envolvidos no golpe de julho?
Enquanto a tentativa de golpe estava em progresso, eu a condenei fortemente. Considero traição à unidade de um país engajar-se em uma atividade que resultará na morte de seus cidadãos. Os envolvidos nesse evento horrível devem ser levados à Justiça. Mas, em vez de perseguir individualmente os oficiais responsáveis pela perda de vidas, Erdogan está indo atrás de um movimento social inteiro, encarcerando jornalistas, acadêmicos, funcionários civis e fechando hospitais e escolas.
Por que Erdogan o acusa diretamente de liderar a quartelada?
Não é a primeira vez que ele faz isso. Quando ocorreram os protestos no Parque Gezi, em junho de 2013, ele pôs a culpa num certo “interesse lobista internacional”, em conjunto com o embaixador americano, e polarizou a sociedade para solidificar sua base eleitoral. Além disso, intimidou donos de meios de comunicação que não eram subservientes a ele. Em dezembro de 2013, quando vieram à tona evidências de corrupção em seu governo, Erdogan apontou o dedo para mim e para meus simpatizantes e aproveitou para subjugar o Judiciário. Agora, está usando a tentativa de golpe para deixar os militares sob seu comando. Com o objetivo de justificar o controle da mídia, do Judiciário e dos militares, Erdogan precisa de um inimigo, de um bode expiatório. Por isso está focando em mim e em meus simpatizantes. Metade da população na Turquia não votou em seu partido. Assim como na sociedade em geral, uma grande parcela do Judiciário, da burocracia estatal e dos militares é contrária ao seu governo autoritário. Ele reprime o Hizmet por motivos pragmáticos, até maquiavélicos. O mesmo método foi usado por líderes fascistas no passado para justificar o acúmulo de poder.
O senhor teme ser extraditado?
Até o momento, não há sinal de que o governo americano pretenda atender ao pedido de extradição. Por outro lado, o governo turco está insistindo nisso e até inventou siglas e codinomes (Organização Terrorista Fetullah Gülen, por exemplo) para se referir ao nosso movimento. Parece-me que, ao culpar e acusar nosso movimento, o governo turco está tentando encobrir os próprios atos. Duas ou três delegações turcas já vieram aos Estados Unidos e afirmam ter entregado muitos documentos. Mas as pessoas que viram esses arquivos dizem que eles não fazem o menor sentido. São documentos confusos, sem lógica. Não creio que os Estados Unidos vão consentir numa exigência sem base em provas reais ou legalmente aceitáveis. Sei disso por declarações públicas do governo americano e também pelo que me contam meus advogados, que pediram para ver todos os documentos que a Turquia enviou. Recebo informações de várias fontes. Nenhuma delas, por si só, tem dados muito extensos, mas juntando tudo consigo pintar um quadro bastante completo da situação.
A disputa em torno da sua extradição pode se tornar um problema diplomático e geopolítico para os Estados Unidos?
Acredito que o governo turco esteja blefando. Duvido que chegue a ponto de realmente fechar a base aérea de Incirlik ou outras bases americanas em seu território (usadas nos bombardeios contra o Estado Islâmico, na Síria) só por causa da recusa dos Estados Unidos em me extraditar.
Faz sentido a suspeita de que o próprio Erdogan teria armado um falso golpe de Estado?
Assim como foi errado Erdogan me culpar apressadamente sem nenhuma evidência, seria um equívoco se eu o culpasse sem prova. Não sei quem planejou e tentou executar o golpe. Somente uma investigação apropriada, na qual as pessoas não temam a tortura, e um julgamento justo poderiam revelar os verdadeiros idealizadores e os participantes voluntários. Uma coisa está muito clara. As ações do governo de Erdogan após o golpe têm como objetivo expandir seus poderes, eliminar qualquer um que não seja um legalista, segundo a classificação do governo, e intimidar os grupos civis independentes da sociedade. Mesmo que Erdogan não tenha orquestrado o golpe, ele está tirando total vantagem do episódio para acumular mais poder e redesenhar as Forças Armadas, a última instituição que ainda resistia ao seu controle.
Por que o senhor apoiou Erdogan na campanha de 2003 e depois rompeu com ele?
O apoio dos nossos amigos na forma de votos ou de suporte midiático foi devido à promessa de reformas democráticas para que a Turquia se unisse à União Europeia. O partido de Erdogan, o AKP, prometeu parar de classificar as pessoas com base em sua visão política, respeitar a liberdade de religião e conter a influência militar em questões domésticas. Tudo isso estava no programa do partido, e seus líderes anunciaram essas promessas inúmeras vezes. Durante o primeiro mandato, eles de fato implementaram essas reformas e foram elogiados pelos líderes da União Europeia. Infelizmente, não continuaram nesse caminho.
O AKP é um partido de orientação religiosa. A ambição política é uma característica inerente ao Islã?
Se um Estado dá aos seus cidadãos o direito e o ambiente para praticar livremente a religião, então um muçulmano não deve buscar outra forma de governo. Quando política e religião se misturam, as duas sofrem, mas a religião sofre mais. O Islã é uma religião. Não é uma ideologia política. O Islã não especifica uma forma de governo, mas oferece princípios para orientar qualquer governo. São princípios como a proteção à vida, à religião, à saúde mental e física, à família, à propriedade e às liberdades básicas.
Como esses princípios estão ameaçados na Turquia, o Hizmet almeja o poder político no país?
Os participantes do Hizmet nunca procuraram obter poder político para governar o país. É por isso que eles não formaram um partido nem se engajaram em negociações com as legendas existentes em troca de assentos no gabinete ou no Parlamento. As doações financeiras e os recursos humanos do Hizmet têm focado instituições educacionais e organizações intelectuais e profissionais para servir à sociedade. O mentor de Erdogan (Necmettin Erbakan) me ofereceu pessoalmente um assento no Parlamento décadas atrás. Recusei a oferta porque, como um pregador, não tenho o direito de alienar ninguém na minha audiência. O Hizmet é aberto a todos, e as posições políticas de seus integrantes são individuais.
Os integrantes do Estado Islâmico dizem viver como os muçulmanos dos primeiros séculos. Eles estão certos em imitar a vida de Maomé?
A vida do profeta é um exemplo que deve ser imitado por todos os muçulmanos. Mas é crucial entender a essência da sua vida. Pinçar algumas declarações ou descontextualizar suas ações e palavras não resulta em um quadro preciso. Um muçulmano deve examinar toda a sua vida, considerar as circunstâncias e ver de que modo esse exemplo era seguido pela comunidade. Algumas de suas ações devem ser seguidas pela comunidade islâmica em qualquer tempo. Sua prática de cultuar Deus é o primeiro exemplo. Outras ações são limitadas às circunstâncias da sua época. Em alguns casos, ele simplesmente tolerou uma atitude sem aprová-la ou condená-la. Os primeiros muçulmanos, por exemplo, estavam envolvidos em conflitos armados, mas, de acordo com especialistas em que confio, eles estavam apenas se defendendo.
O senhor já foi acusado de antissemitismo. Suas ideias a respeito dos judeus mudaram?
No passado, parcialmente devido à influência do meu ambiente cultural, fiz generalizações a respeito dos judeus, dos cristãos e do Ocidente. Mas, durante o início da década de 90, na Turquia e especialmente depois de me instalar nos Estados Unidos, em 1999, tive a chance de observar e de interagir com indivíduos dessas culturas e minha perspectiva evoluiu. Percebo melhor agora que a advertência profética ou corânica para certos grupos não tem relação com esses grupos em si, mas com certas qualidades exibidas por eles em um contexto histórico. Se outros grupos, incluindo muçulmanos, exibissem essas mesmas qualidades, eles receberiam as mesmas críticas e advertências. Inversamente, se um grupo é elogiado por certas virtudes, outros grupos, muçulmanos ou não muçulmanos, podem ser destinatários desses mesmos elogios, se exibirem as mesmas virtudes.
O senhor pode ser mais concreto?
Tenho 77 anos e já vi muita coisa. Vi muçulmanos, inclusive gente que conheço pessoalmente, sofrendo nas mãos de pessoas que identificam a si mesmas como muçulmanas. Já vi intelectuais judeus e rabinos lutando pelos direitos dos muçulmanos e defendê-los contra a discriminação. Vi que dentro de cada grupo existem indivíduos virtuosos e existem aqueles que carregam a identidade do grupo mas falham em viver de acordo com seus ideais. Critiquei certas ações de Israel no passado, mas generalizar essa crítica a todos os judeus é errado do ponto de vista islâmico. Ter uma atitude negativa com relação a qualquer um devido à sua religião ou à etnia em que nasceu é simplesmente não islâmico.