Golpe é padrão histórico na Turquia
Para quem acompanha o cenário no Oriente Médio, não há surpresa alguma na tentativa de golpe, de desfecho ainda indefinido, contra o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan. A Turquia vive uma tensão histórica entre partidos seculares e religiosos. De tempos em tempos, há uma ruptura nesse equilíbrio instável.
De um lado, establishment militar secular, ligado às origens da nação turca, criada sobre as cinzas do Império Otomano, depois da Primeira Guerra. Para fundar a Turquia, Mustafá Kemal Atatürk teve de enfrentar diversas instituições religiosas otomanas e estabelecer um governo laico, em torno de bases militares.
Do outro lado, movimentos religiosos sempre estiveram próximos da população, cuja identidade religiosa era ameaçada pela nova nação. Como o Islã sempre fez parte da vida e do dia a dia da Turquia, organizações islâmicas eram vistas como ameaça ao poder político estabelecido. Para vigiá-las, foi criado um gigantesco ministério de Assuntos Religiosos, maior que os ministérios do Interior e do Exterior.
Como em geral acontece nesses casos, a repressão aos partidos islâmicos gerava o combustível para que os movimentos crescessem. Ao longo dos anos 1970 e 1980, houve um revival islâmico na população. Entre 1960 e 1997, o país sofreu quatro golpes militares, contra governantes de partidos que professavam diferentes matizes de islamismo.
O golpe de 1997 tirou do poder o engenheiro Necmettin Erbakan, cujo governo tinha permitido o uso de véus e as chamadas para reza nas mesquitas. Erbakan era um gradualista. Chegara ao poder em 1996, numa coalizão que pela primeira vez seria liderada por um partido islâmico. Seu partido foi dissolvido depois do golpe. Um de seus representantes era Recep Tayyip Erdogan, o prefeito de Istambul e discípulo de Erbakan. Ele passou quatro meses na cadeia depois de recitar um poema de tons religiosos numa manifestação no interior.
Ao sair da cadeia, fundou um novo partido, que preferiu chamar de “conservador e democrático”, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). Numa vitória arrasadora, Erdogan assumiu o poder em 2002. Sua plataforma era no início ainda mais gradualista que a de Erbakan na implementação de políticas islamitas.
Ao longo de 14 anos, contudo, Erdogan foi concentrando mais e mais poderes. O momento-chave foi o fracasso na tentativa de tornar a Turquia membro da UE. A partir daí, a islamização foi adquirindo um ritmo mais intenso. À moda de Hugo Chávez ou Vladimir Putin, Erdogan usou expedientes da democracia para reunir poderes cada vez maiores.
A enorme estrutura do ministério da Religião foi empregada para disseminar práticas islâmicas. Curdos foram banidos do governo. Erdogan afirmou que promoveria a segregação em escolas públicas mistas. A venda de álcool foi desestimulada por meio de impostos e de outras restrições.
Desde o início, o governo Erdogan perseguiu adversários políticos, jornalistas e acadêmicos. A partir de 2013, tal perseguição se tornou mais intensa, com prisões sistemáticas. Depois de vencer as eleições para presidente em 2014, Erdogan deu passos na direção de um regime cada vez mais autoritário. Prendeu editores dos maiores jornais do país, que revelaram seu apoio a rebeldes ligados à Al-Qaeda na Síria. Fechou canais de TV que lhe faziam oposição.
Nada disso gerou muitos protestos dos regimes ocidentais. A emergência do Estado Islâmico (EI) na região, além dos 2,7 milhões de sírios que se refugiaram no país tornaram a Turquia um aliado estratégico do Ocidente. É mais cômodo para o governo Barack Obama usar a Turquia para combater o EI do que enviar tropas à região. Mesmo que a posição de Erdogan seja ambivalente em relação ao EI, já que todo o contrabando de petróleo e artefatos históricos que sustenta os jihadistas passa pela Turquia.
As tensões na sociedade turca entre seculares e religiosos jamais desapareceram. Se a repressão à religião deu força aos movimentos islâmicos que culminaram no governo Erdogan, agora foi a repressão promovida por esse governo que deu a alas insatisfeitas dos militares o pretexto para tentar dar o golpe.
Fonte:http://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/golpe-e-padrao-historico-na-turquia.html