Relações entre Turquia e Alemanha vão mal
As estranhíssimas relações entre a União Europeia e a Turquia – que oscilam entre as declarações veementes de entendimento e as mensagens de instauração iminente de guerrilha – estão a evoluir para o distanciamento, numa altura que tudo levava a crer que estavam a entrar numa fase de entendimento. Notícias veiculadas pelas agências internacionais dão conta de que os deputados alemães querem reconhecer formalmente o genocídio armênio, o que está a indignar a Turquia – poucas semanas depois de ter entrado em vigor um acordo acerca da ‘gestão’ dos refugiados vindos do Médio Oriente e antes de entrarem no espaço europeu.
Segundo essas fontes, o Bundestag (parlamento alemão) vai votar amanhã uma resolução de reconhecimento do genocídio proposta pelos grupos parlamentares da maioria centrista e dos Verdes, o que quer dizer que tem aprovação garantida.
Com início formal a 24 de Abril de 1915 mas com muitos antecedentes, o genocídio instigado pelo governo otomano – poucos anos antes de o império sucumbir – fez desaparecer cerca de 1,5 milhões de armênios que viviam na sua região de sempre, a Armênia, que na altura fazia parte das terras controladas pelo Califado. As pretensões de independência parecem estar no centro dos problemas com a Turquia – e, segundo vários historiadores, Istambul não estava interessada em abrir uma nova frente de guerra, numa altura em que tinha de concentrar forças na frente ocidental, onde os exércitos europeus estavam em guerra aberta.
Segundo algumas fontes, o reconhecimento do genocídio pode ser punido, na Turquia, com pena de prisão – e o caso é de tal modo diplomaticamente, difícil que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, telefonou mesmo à chanceler alemã Angela Merkel, para se queixar. “Se a Alemanha cair nesta armadilha, claro que isto vai afetar as nossas futuras relações bilaterais nas áreas diplomática, econômica, comercial, política e militar, uma vez que somos dois membros da NATO. Acho que tudo isto vai ser tido em conta”, afirmou Erdogan.
O incidente diplomático dá-se numa altura em que as trocas de acusações entre Ancara e Bruxelas têm-se sucedido a um ritmo diário. Tudo porque a União Europeia acordou com a Turquia o pagamento de uma verba para que os turcos ficassem com a incumbência de ‘gerir’ os fluxos de refugiados que tentam entrar na Europa – por outras palavras: parando o seu progresso em direção à Europa.
Uma das contrapartidas acordadas – para além da entrega de numerário – era o fim da imposição de vistos de entrada para os turcos no espaço da União Europeia. Segundo Ancara, essa medida ainda não avançou, e por isso todo o plano está em modo (não oficial) de suspensão. Por outro lado, os responsáveis da União Europeia também não apreciam nada as tentações presidencialistas de Recep Erdogan – que tem tentado impor a sua figura como líder incontestado do país – e que passam, entre outras medidas que a Europa considera muito discutíveis, pelo ataque à minoria curda.
Liberalização de vistos deveria começar hoje mas há divergências com a UE e essas fazem tremer acordo sobre os refugiados
O presidente turco não dá tréguas na pressão que exerce sobre a UE – e a Alemanha em particular – fazendo exigências e tentando obter vantagens em troca do acordo sobre os refugiados (estabelecido entre UE e Turquia). “Se a Alemanha se deixar enganar por isso as relações bilaterais a nível diplomático, econômico, comercial, policial e militar serão afetados. Somos ambos países da NATO”, avisou Recep Tayyip Erdogan, referindo-se a uma proposta de lei que reconhece a existência de um genocídio armênio em 1915 e deverá ser votada pelos deputados alemães este mês de junho.
A Turquia, país muçulmano, candidato à adesão à UE, admite que muitos cristãos armênios foram massacrados pelas forças do Império Otomano durante a I Guerra Mundial. Nega, porém, que tais massacres tenham constituído um genocídio, organizado de forma premeditada. A questão é muito sensível e as relações entre os países que reconhecem o genocídio e o governo turco costumam ficar tremidas. Isso mesmo aconteceu em 2011, quando o Parlamento francês aprovou a penalização da negação do genocídio armênio. Na altura, Erdogan, que era primeiro-ministro, disse que a decisão iria “abrir feridas irreparáveis”.
Falando ontem em África, onde se encontra a visitar vários países, Erdogan, do partido AKP, disse ter expressado a sua insatisfação numa conversa telefônica com a chanceler Angela Merkel. Um porta-voz do governo alemão confirmou o telefonema e disse que Erdogan e Merkel tinham estado a discutir o acordo sobre os refugiados UE-Turquia. A chanceler tem sido criticada e acusada de ser demasiado branda com o chefe do Estado turco, ao ponto de aceitar o afastamento de um humorista da televisão pública ZDF por causa de um poema–piada sobre Erdogan, que este considerou insultuoso.
Merkel tem feito todos os esforços para que o acordo UE-Turquia sobre os refugiados funcione e isso permita aliviar a pressão migratória sobre território da UE. Mas os turcos exigem contrapartidas em troca dos 2,7 milhões de refugiados sírios que abrigam no seu território: apoio financeiro até seis mil milhões de euros, avanços no seu processo de adesão com a abertura de novos capítulos nas negociações, liberalização de vistos para que os seus cidadãos entrem na UE. Esta última medida deveria entrar em vigor hoje mas há divergências: Bruxelas quer que Ancara mude a sua lei antiterrorista primeiro, Erdogan diz que não o faz e ameaça suspender o acordo UE-Turquia sobre os refugiados.
Deputados alemães ameaçados de morte por reconhecerem genocídio armênio
Dois dias antes de o parlamento alemão reconhecer formalmente o genocídio do povo armênio pelo Império Otomano, milhares de e-mails chegam às mãos dos deputados – uns com protestos, outros com ameaças. O presidente turco não enviou nenhuma das mensagens, mas fez um telefonema à chanceler alemã, a protestar contra a resolução projetada.
Os milhares de e-mails de protesto têm sido enviados por cerca de cinco centenas de associações turcas sediadas na Alemanha, sob o chapéu da Comunidade Turca de Berlim. Eles inspiram-se numa mensagem, citada em Der Spiegel, que considera a resolução como “veneno para a coexistência pacífica entre alemães e turcos neste país, mas também na Turquia”.
A campanha das organizações turcas
O texto prossegue, afirmando: “Mais de 90 por cento do povo turco rejeita acertadamente a acusação de genocídio e considera-a uma calúnia”. Seguidamente, apela-se a que os cidadãos turcos enviem por fax ou por e-mail mensagens de protesto aos deputados federais alemães.
A mensagem está assinada por grupos ligados a partidos tão diversos como os Democratas Euro-Turcos (UETD, uma cisão do partido governamental AKP); a União Islamo-Turca para a Religião (Ditib); o partido de oposição CHP; e o partido de extrema-direita “Lobos Cinzentos”.
O apelo a que sejam enviadas mensagens de protesto tem obtido um eco alargado e vem sendo seguido à letra. Em especial os deputados de origem turca no Bundestag (parlamento alemão) têm sido tratados por e-mail, Twitter ou Facebook, com expressões como “traidor”, “porco armênio”, filho da p…”, “terrorista armênio” ou “nazi”, segundo disse à cadeia de televisão ARD Cem Özdemir, o líder parlamentar dos Verdes.
Algumas dessas mensagens, enviadas a políticos e jornalistas, vão mais longe, dizendo por exemplo: “Tu tens de ser eliminado”. Ou então: “O teu fim vai ser como o de Hrant Dink [jornalista turco de origem armênia assassinado em Istambul, em 2007, por um jovem de extrema-direita]”.
A resolução que vai na quinta feira ser proposta à votação do Bundestag foi objeto de acordo entre democratas-cristãos, social-democratas e verdes. Ela aplica por várias vezes a expressão “genocídio” ao extermínio de cerca de 1,5 milhões de armênios em 1915 e 1916. Esse morticínio ou deportação de população civil armênia, e de outras minorias cristãs, é parcialmente justificado pelo Governo turco com o argumento de a Armênia ser um país beligerante na Primeira Guerra Mundial, em confronto com o Império Otomano, que é antecessor do atual Estado turco.
A resposta da comunidade armênia
Também a comunidade armênia tem enviado para os parlamentares do Bundestag milhares de e-mails, exortando-os a reconhecerem finalmente a existência de um genocídio em 1915 que constituiu precedente grave para o Holocausto. O tom dos e-mails armênios é “agressivo” e revela frustração mas, segundo os deputados, não contém ameaças.
A frustração explica-se em parte pelo facto de já ter estado sobre a mesa no ano passado uma resolução semelhante e de ela ter sido retirada para não melindrar o Governo turco.
O projeto de resolução de 2016 surge num momento em que a Turquia tem nas mãos um poderoso meio de pressão adicional – o acordo sobre os refugiados, para o qual o país nas margens do Bósforo é suposto desempenhar o papel de barreira, impedindo-os de prosseguirem a caminho da Europa. Alguns dos deputados alemães já anunciaram que não estarão presentes à votação, por considerarem insensato hostilizar a Turquia.
Há um século atrás, a deportação em massa e extermínio de centenas de milhares de armênios foi levada a cabo com o conhecimento do Governo alemão, que tinha o Império Otomano como aliado na Primeira Guerra Mundial. Mas, apesar dos melindres turcos e mesmo alemães, que o texto suscita, dá-se como praticamente certo que haverá, desta vez, suficiente maioria para aprová-lo.
A campanha do Governo turco e o destino dos refugiados
Em todo o caso, o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, não baixa os braços na luta contra a resolução, reforçado pelo já citado factor adicional que é o papel da Turquia no dispositivo de retenção dos refugiados fora da Europa.
Segundo o diário turco Hurriyet, Erdoğan telefonou hoje à chanceler alemã, Angela Merkel, para avisá-la dos efeitos negativos que tera aprovação do projeto teria nas relações “econômicas, políticas e militares” entre os dois países.
Em conferência de imprensa, o presidente turco disse confiar que todos estes factores serão ponderados numa “decisão que ainda não foi tomada”.
Por seu lado, Merkel tinha telefonado ao novo primeiro ministro turco, Binali Yıldırım, para felicitá-lo pela sua nomeação e logo nesse telefonema teve também de ouvir amargos reparos do neófito chefe do Governo contra a iminente aprovação do projeto sobre o genocídio armênio.
Fontes citadas pelo Hürryiet referem ainda que Yıldırım invocou precisamente o acordo sobre os refugiados, dizendo que “a Turquia tem estado a cumprir a sua parte nesta questão e esperamos que a UE cumpra os seus compromissos em questões como a isenção dos vistos e antes de mais o apoio financeiro que prometeu aos refugiados sírios”.
Fonte: economico.sapo.pt