O que fazer depois de Paris?
Desde a segunda-feira 16, o presidente da França, François Hollande, vem tentando construir uma resposta aos atentados de 13 de novembro em Paris, classificados por ele como um “ato de guerra” do Estado Islâmico. Seu discurso equivale a uma cópia mal-feita do neoconservadorismo norte-americano liderado por George W. Bush e consiste, basicamente, em tratar o problema do terrorismo como uma questão securitária e militar, um conflito armado.
A “guerra ao terror”, iniciada pelos Estados Unidos após o 11 de Setembro, é um fiasco retumbante. Segundo um relatório anual do Departamento de Estado dos EUA, em 2002, 725 pessoas morreram vítimas de atentados terroristas. No ano passado, foram 37.727 mortes. O crescimento exponencial se deu porque o combate ao extremismo hoje é centrado no contraterrorismo e nas intervenções militares, ações cujo objetivo não é lidar com as raízes do extremismo, mas com seus efeitos.
Sociedades e governos precisam superar essa lógica e fazer reflexões profundas para desenvolver ações capazes de manejar a crise ensejada pelo radicalismo islâmico e sua face mais sombria na atualidade, o Estado Islâmico. Antes de se apressar para retaliar os jihadistas, é preciso deliberar sobre o formato da reação. Alguns aspectos precisam fazer parte da discussão.
O primeiro deles é reconhecer o tamanho real da ameaça. Por mais horrenda que tenha sido a noite de 13 de novembro em Paris, ela não consiste em um episódio comum. As 37 mil mortes por terrorismo representam apenas 7% do total de mortes violentas no mundo. Além disso, elas se concentram em países afetados por conflitos locais e regionais: 63% das vítimas estavam em Iraque, Síria, Nigéria, Afeganistão, Paquistão e Índia. Isso ao menos indica que o terrorismo está conectado à instabilidade política, uma “boa” notícia, pois facilita a busca por respostas.
Obviamente, o fato de os terroristas de Paris terem mirado pessoas comuns em lugares públicos de uma capital ocidental choca, não apenas pela perversidade, mas por ameaçar um estilo de vida idealizado por muitos. É fundamental, no entanto, conter as reações exageradas, pois elas podem facilmente desembocar em ações irracionais capazes de agravar o problema.
Ao mesmo tempo, é preciso ter em conta que a ameaça não pode ser inteiramente contida. Apesar dos inúmeros esforços e bilhões gastos por agências de inteligência pelo mundo afora, o combate ao terror é cada vez mais complexo. Lobos solitários, células adormecidas, o tráfico de armas e a facilidade de comunicação abaixo do radar das autoridades torna o contraterrorismo um jogo de gato e rato no qual os criminosos são favoritos.
Como diz a batida frase, no combate ao terror as forças de segurança precisam ter sorte todas as vezes. Os terroristas precisam ter sorte uma só vez. Não há dúvidas de que o mundo sofrerá novos atentados, e é importante ter ciência disso para manter a serenidade quando a violência chegar. Ela será necessária para manter a busca por soluções de longo prazo.
Alienados e desprivilegiados
Um segundo aspecto é o reconhecimento, por parte das sociedades europeias, da existência de um delicado problema a ser resolvido com relação ao tratamento das comunidades árabes e muçulmanas. Em geral, os adolescentes e jovens adultos recrutados por extremistas como o Estado Islâmico são atraídos em momentos de fragilidade, nos quais estão desiludidos.
A queda na armadilha jihadista depende de características de cada indivíduo, mas o ressentimento pode ser motivado tanto por questões pessoais, como o fim de um namoro ou uma relação familiar precária, quanto por questões sociais, como a falta de perspectivas e o preconceito.
Ao contrário do que costumam afirmar muitos, não existe uma relação comprovada entre a pobreza e o extremismo, mas áreas empobrecidas e marcadas por administrações públicas desfuncionais costumeiramente surgem no noticiário como terreno fértil para o recrutamento. É o caso de Molenbeek, distrito de Bruxelas, capital da Bélgica e da União Europeia, por onde passaram terroristas responsáveis por diversos atentados recentes, inclusive os de Paris.
O desemprego no bairro é de 30% (40% entre os jovens) e a imensa maioria das vagas estão disponíveis apenas para pessoas com grau universitário e fluência em holandês e francês, os idiomas oficiais do país. Ocorre que 60% dos jovens de famílias muçulmanas não foram para a universidade e não falam holandês.
Neste ambiente, muitas vezes o islã radical serve como uma espécie de válvula de escape para jovens em busca de reafirmar sua auto-estima. Segundo o especialista Oliver Roy, o radicalismo religioso na Europa é um “movimento da juventude”, que muitas vezes surge após uma carreira no crime – na qual muitos jovens também buscam afirmação.
Diante desta situação complexa, é preciso questionar a forma como as sociedades europeias lidam com suas minorias. Reações do tipo “Je suis Charlie” têm efeito inócuo no combate ao terrorismo, mas preocupa que, neste novembro, a onda de solidariedade tenha sido obscurecida pelo ímpeto de tentar bloquear a entrada de imigrantes, cuja chegada em massa nos últimos meses colocou a resiliência dos valores europeus em dúvida.
Hoje, os jovens das minorias na Europa já sofrem com preconceito e oportunidades inferiores às dos “europeus”. Estender esta hostilidade aos refugiados recém-chegados e tratá-los como um Cavalo de Tróia que levará o terror ao continente, como indica a onda de xenofobia a abater as sociedades e partidos políticos europeus, é, além de moralmente condenável, ampliar a quantidade de pessoas desencantadas e, assim, vulneráveis ao recrutamento.
A religião como forma de contestação
O terceiro aspecto do debate é admitir a complexidade dos problemas do Oriente Médio. É uma questão que precisa ser discutida à luz de duas perguntas: O que é o Estado Islâmico? Por que ele existe?
O Estado Islâmico é a manifestação mais sinistra de um campo de pensamento chamado islã político, segundo o qual o islã pode e deve resolver todos os problemas impostos pela modernidade. O espectro ideológico do islã político, vasto e complexo, é dominado pelos sunitas, a corrente majoritária da religião muçulmana. São adeptos do islã político sunita desde partidos que participam de processos eleitorais, como o AKP da Turquia e a Irmandade Muçulmana do Egito, até os salafistas, que rejeitam o engajamento político-partidário e pregam um retorno ao islã praticado no tempo de Maomé. No ponto mais extremo do salafismo estão os jihadistas, que adotam a luta armada.
O salafismo como um todo se expandiu pelo mundo graças aos petrodólares da Arábia Saudita. O jihadismo, por sua vez, se tornou um movimento global no Afeganistão, após a guerra dos mujahedin contra a União Soviética. Desde então, a “guerra santa” adquiriu diversas formas e nomes: Takfir wal-Hijra, Jihad Islâmica, Al-Qaeda, Boko Haram, Al-Shabab, Estado Islâmico etc. O ISIS, como também é conhecida a organização que tomou partes do Iraque e da Síria, é a ponta de lança de um fenômeno específico, que pode vir a ser substituída por outra, mais ou menos radical.
O islã político floresce no Oriente Médio por ser a forma de contestação mais adaptada ao ambiente. Por décadas após a Primeira Guerra Mundial, as potências ocidentais plantaram o autoritarismo e o sectarismo no Oriente Médio. Líderes locais regaram, cultivaram e colheram esses males com eficiência.
O resultado é uma região retalhada por Estados frágeis e percebidos por grandes frações de suas populações como ilegítimos, graças a uma mistura de opressão política e fracasso de governança, que retirou dos cidadãos o direito de sonhar, com paz, prosperidade, desenvolvimento, direitos humanos.
No Oriente Médio, as possibilidades de se questionar essa ordem são altamente restritas. Em geral, são sufocadas todas as formas laicas de se fazer oposição – a parlamentar, a partidária, a midiática, a sindical e a estudantil. As mesquitas, entretanto, continuam abertas, e muitas vezes, radicalizadas. Clérigos que pregam a tolerância são suprimidos, até porque mesmo os regimes que combatem abertamente o radicalismo manipulam o islã e impedem um debate sobre o papel da religião no Oriente Médio.
A “Primavera Árabe”, onda de manifestações populares iniciada em 2011, expôs este dilema de forma clara. Muitos no Ocidente sonharam com uma onda de democratização, mas logo o status quo reagiu e conseguiu impor a lógica maniqueísta de que só há duas alternativas para o Oriente Médio: os regimes autoritários ou o terrorismo. Religiosos moderados e setores laicos e liberais foram simplesmente suprimidos do processo. Foi assim na Tunísia, no Egito, na Líbia e na Síria.
Na efervescência surgida em um Oriente Médio convulsionado pelas manifestações populares e pela reação a ela, o Estado Islâmico tenta se posicionar como uma alternativa redentora de todos as agruras. Em parte, o ISIS tira forças da divisão sunita-xiita que abala a região e é fomentada pela guerra fria travada entre a Arábia Saudita (sunita) e o Irã (xiita). Este sectarismo é especialmente acentuado no Iraque e na Síria, onde populações sunitas se encontram excluídas do processo político por governos dominados por xiitas e alauítas (secto próximo ao xiismo ao qual pertence Bashar al-Assad).
O caos e o Estado Islâmico
Diante das atrocidades do Estado Islâmico, é tentador pensar que uma ação militar de grandes proporções poderia resolver o problema, mas bombas são incapazes de destruir ideologias. No caso do Estado Islâmico, essa hipótese é particularmente impraticável, pois, como exposto acima, o ISIS é resultado das dinâmicas do Oriente Médio.
Uma invasão promoveria eventos imprevisíveis e incontroláveis e galvanizaria o anti-americanismo e o anti-ocidentalismo em uma região historicamente oprimida pelas potências estrangeiras. Seria, assim, uma dádiva aos extremistas.
O Estado Islâmico é especialmente pernicioso por conta de seu messianismo apocalíptico. Um dos textos seminais da estratégia do ISIS é intitulado Gerenciando o Caos. Do livro, o Estado Islâmico retira a pregação de ataques a civis, a alvos desprevenidos, o recrutamento de adolescentes e ações de provocação para atrair tropas ocidentais para o combate corpo a corpo. Como lembrou recentemente o antropólogo Scott Atran, o ISIS deliberadamente tenta se aproveitar do caos existente no Oriente Médio para ganhar corpo e semeia a selvageria para se aproveitar dela.
Fomentar a desordem, resultado inevitável de uma guerra, seria fortalecer o grupo.
O terror do Estado Islâmico causa perplexidade, mas cabe às sociedades democráticas e aos líderes políticos evitar o impulso da vingança e refletir sobre o que de fato precisa ser feito. As potências ocidentais precisam, agora, desenvolver uma resposta de três níveis. Uma militar, que empodere atores locais para combater o ISIS; uma diplomática, que busque contemplar os interesses sauditas e iranianos, mas também de curdos e da Turquia; e uma que pense no futuro pós-Estado Islâmico.
Se o extremismo religioso se alimenta do fracasso dos Estados e do desespero das populações, o objetivo deveria ser o erguimento de governos inclusivos e eficientes. Esta deve ser uma tarefa das sociedades locais, mas elas não conseguirão fazer isso enquanto o mundo vende bilhões em armamentos e firma alianças com ditaduras draconianas e monarquias sectárias que exportam ideologias intolerantes.
Em vez de acionar os militares, é hora de acionar especialistas, analistas e diplomatas e fomentar um debate que envolva um reexame completo a respeito das políticas ocidentais para o Oriente Médio. É um evento bem mais tedioso de se acompanhar que uma guerra pela televisão, mas só mudando a realidade da região o terrorismo pode ser combatido de forma eficiente e duradoura.
por José Antonio Lima
Fonte: www.cartacapital.com.br